quarta-feira, 16 de julho de 2014

Micro Ficção : O RELATÓRIO

O RELATÓRIO "...e assim dou por terminadas as intervenções na 28ª e última reunião da Real Sociedade de Caça ao Pinguim Cego de Três Metros de Altura. Secretário, leia a acta." O Magnífico Mestre fechou um grande livro encadernado a couro preto, e prata, fechou os olhos e deixou a sua imaginação voar. O Secretário, um homem pequeno, careca e de óculos grossos, quase sem pescoço, clareou a voz e deu início à leitura. "O Pinguim Cego de Três Metros de Altura foi visto pela última vez virando uma esquina para uma avenida movimentada. O Observador Extraordinário seguiu-o onde até pode, mas perdeu-lhe o rasto no passeio lavado pela água da chuva. Ele enfrentava um grave dilema : volto para trás e aviso o Atirador Excepcional e perco-o de vista, ou deixo-me ficar onde estou e reporto depois o avistamento ao Magnífico Mestre ? 01:47 - Houve relatos de o Pinguim estar numa estação de comboio, um pouco ao lado da casa-de-banho das mulheres. É curiosa a falta tanto de pudor como de curiosidade feminina neste caso ; é algo que a Real Sociedade deveria estudar mais aprofundadamente. 02:03 - O Pinguim Cego estava na fila para ser atendido nas Finanças. Isto é sintomático : ele escapa-nos, mas não anda propriamente a esconder-se. E, se se esconde, prova que existe. E assim se coloca outra interrogação pertinente : haverá mais do que um ? 03:16 - O Pinguim foi visto através do vidro molhado de um táxi, na Rua das Guerras do Ópio, junto a uma esquadra de polícia abandonada por agentes com um estranho sentido da vida e do dever. 03:17 - Ricky Torres, um empregado de balcão de 23 anos, disse que viu o Pinguim deitando fora a beata de um cigarro junto à porta de um cinema que fechou há 20 anos. Infelizmente os nossos Técnicos não conseguiram encontrar vestígios. 03:52 - A presença do Pinguim foi detectada junto do funeral de um homem sem amigos. Teria sido facilmente capturado, mas sem uma força de intervenção rápida essa esperança é nula. Como aliás são todas. 04:01 - O Pinguim Cego de Três Metros de Altura comprou um guarda-chuva na praça. Não sabemos se para ele se para alguém. O mistério adensa-se cada dia que passa. Estamos em Julho, em pleno Verão. Porque faria ele isso ? 04:36 - O Pinguim deitou-se num degrau de porta de igreja. O Observador Extraordinário viu como as pessoas entravam para a missa e passavam por cima dele, como se ele não estivesse lá. A indiferença faz as coisas parecerem invisíveis. Uma alma caridosa colocou duas moedas de 50 cêntimos nos seus olhos. 04:42 - Num último estertor, o Pinguim declamou alguns versos de um poema sobre a morte de uma rosa tuberculosa." O Secretário assinou a Acta, colocando-lhe uma adenda : "acabou tudo, e os cães ganem num campo de batalha distante enquanto lamentam as cores que depressa fogem do rosto dos ainda vivos. A Real Sociedade de Caça ao Pinguim Cego de Três Metros de Altura encerra as suas actividades com uma festa num pavilhão fechado, de onde ninguém sairá vivo."

Micro Ficção : TRÊS VINHOS

TRÊS VINHOS 1ª Degustação Estamos perante um vinho encorpado, que traz consigo o perfume de ginásio ; de ferro e borracha e roupas apertadas transpiradas por homens e mulheres que querem desesperadamente perder peso em dois meses, a fim de terem uma compleição que lhes permita sentir-se melhor com eles mesmos na praia e receber elogios no escritório. Este vinho é um tanto ou quanto pretensioso, pois engana na limpidez e na cor. Os seus tons são tudo menos tons padrão, marcados pelo fingimento daquilo que quer ser o que não é ; de quem se compara com os outros e sofre com isso, com um falso sorriso nos lábios. É falso para si e para os outros ; tem o dourado dos vinhos envelhecidos mas quer transparecer uma tonalidade palha dos vinhos novos, em que a uva é jovem e ainda tem na pele o refrigério enganador das trovoadas de Maio. Este vinho não soube envelhecer graciosamente. Nota : 6/10. 2ª Degustação Neste caso deparamo-nos com um branco plasmado em cascos e invólucros que não lhe ficam bem por lhe atribuírem características que não lhe correspondem. Revela como principal aroma terciário o couro de sapatos muito usados em caminhadas de vida infrutíferas e inconsequentes ; subiu e desceu planaltos e socalcos muitas vezes em mobilidades sociais frequentes de ambientes batidos e percursos erráticos. Este vinho tem boas preferências ao nível de frutos vermelhos de sangue jorrado nas lágrimas doces e perenes dos que sofrem sem saber, provavelmente por serem como são mas como tal não se aceitam. Este vinho nunca aspirou a ser vendido nas alturas certas e hoje merece estar na parte de trás das prateleiras onde aguarda com serena paciência que um provador de experiências cansadas resolva ter a sua última aventura entre os torrões da terra quente e seca pelo Sol. Pode ser bom para acompanhar marisco do Chile em época de desconto. Nota : 6/10. 3ª Degustação Este vinho é um nobre rosé, de boa casta, que surpreende na parte de trás das papilas gustativas como um bom pontapé na nuca quando se está caído no chão depois de um retumbante fracasso. Mesmo atípico, ou por causa disso mesmo, deixa consigo a consistência da persistência de quem não desiste e se encoraja a si próprio com boa ou má fé em circunstâncias fortuitas fundamentadas na possibilidade e na sincronicidade dos valores humanos, quando tocados em concerto por um deus louco. Forte no palato, engolido por uns e cuspido por outros, recusa encostar-se às boas reputações de vinhos superiores em mais na produção e controlo laboratorial do que talento puro e genuíno. Sentido e ressentido, torna-se amargo quando provado na rectaguarda das línguas viperinas tudo menos habilitadas para suportar a sua pureza. É melhor para deglutir caça capturada por pequenos burgueses famintos mais de afirmação do que de fome. Nota 7/10. "

terça-feira, 15 de julho de 2014

Micro Ficção : CIDADE REVOLUCIONÁRIA

CIDADE REVOLUCIONÁRIA O visitante que chegasse naquele dia à cidade de Feonya depararia com um cenário de revolução. Tudo estava em estado de sítio, multidões ululantes apinhavam as ruas, saudavam as forças armadas do novo regime, e punham crisântemos nos canos das espingardas. Perguntando a um munícipe, o viajante depressa descobriria que o mapa administrativo e social da Cidade estava a ser redesenhado. Tinha ocorrido um golpe de Estado Sub-Cultural. Até esse dia, a cidade tinha sido governada por uma elite, a Gente Gira. Por exemplo, actores e actrizes de telenovela, estrelas de ténis de 4ª categoria, pessoas célebres por serem célebres e quejandos, pessoas com look - eram a aristocracia da cidade. Oprimiam tudo e todos com sorrisos de anúncio de pasta de dentes e vidas fantásticas de cruzeiros a Cancún, faziam-se fotografar com namorados e namoradas em relações endogâmicas inter-classistas, desprezando os que não eram ninguém, que não tinham o visual certo, que escapavam à definição de "cool". Havia contra esta gente inane uma raiva surda que justificava um ódio baboso ao que era bem sucedido porque era simplesmente belo. O brilho das luzes de néon de rua comercial, os manequins magrinhos nas vitrines, as roupas desenhadas por estilistas como se toda a gente tivesse o corpo que tinha aos vinte anos, um dia tudo explodiu. No dia anterior à revolução, reuniram-se facções em frente unida, em conclave secreto : As Raparigas Gordas Que São Boas Amigas e Confidentes juntaram-se aos Góticos Que Vestem Preto Mesmo no Verão e aos Rapazes dos Computadores e de Aparelho nos Dentes e Óculos, e planearam o golpe final. Os Rapazes infiltrariam os sistemas informáticos do Inimigo. Os Góticos circulariam pela cidade, espalhando o terror brandindo maças e machados tipo Senhor dos Anéis, e as Raparigas Boas Amigas e Confidentes passariam a divulgar toda a informação e segredos da Gente Gira, das amigas boazonas, dos amigos a quem permitiram uma queca de aniversário, dos desportistas de liceu que copiam nos exames. O golpe foi um sucesso. No dia da revolução, ao som da canção senha "We Are The Robots", da banda electrónica alemã Kraftwerk, a Gente Gira e famosa viu-se rodeada pelos antigos escravos do dever de respeitar a beleza pela beleza, intrinsecamente. Via-se apresentadores de TV fugindo para os montes e para o Brasil com as falsas jóias nas mãos ; jovens concorrentes de concurso de talentos tapavam a cara para esconder a beleza ; outros roubavam óculos aos pais para parecer inteligentes, abraçando entusiasticamente a nova raça dominante. O Conselho da revolução reuniu os Giros e Famosos no Terreiro do Paço, e foi deliberado um maciço auto-de-fé a quem não renegasse os antigos modos de vida. Foi decidido em votação popular de braço no ar que os Novos Feios e Desprezados jurariam fidelidade à cultura literária ou tecnológica, prometiam começar a ler livros e reflectir filosoficamente sobre o carácter efémero da Beleza Natural. E assim lentamente, muitas louras voltaram a ser morenas, nunca mais houve ninguém sem um par em discotecas e bailes ; acabou o terror de ver jovens endinheirados a ir para a escola em boas motos e carros descapotáveis para a faculdade ; as telenovelas passaram ser mais teatrais e realistas, sem mesas de pequeno-almoço repletas de frutos tropicais, e estabeleceu-se que haveria um sentido estético de estado, uma noção de beleza oficial, em que ninguém seria menorizado fosse pelo que fosse, e muito menos pelo valor da aparência.

Os Animais : CEGONHA

Algures no futuro... «Relatório do Kommandeurleutnant Von Stork : "A perda da esperança é maior forma de privação da liberdade". Majestade, essa frase resume de forma brilhante a filosofia da estratégia de ataque que eu...aliás Vós, haveis delineado para a Guerra Total Contra a Humanidade. A destruição do habitat, a intensificação da agricultura e abandono de práticas tradicionais, a contaminação química das cadeias alimentares, o abate ilegal de árvores foram factores que contribuiram para a regressão da nossa bela e delicada espécie em toda a Europa Ocidental. Estava na hora de retaliar, Majestade...de dar à espécie humana um exemplo único, em nome de toda a Fauna do Mundo ! Shabaz Makal ! Viva a Cegonha, para sempre ! Fomos para Paris e tomámos de assalto a Cidade Luz, a cidade do amor ! Marchámos exultantes em passo de ganso, sob o Arco do Triunfo ! Shabaz Makal ! Já não há amor nem bébés, Paris já está a arder ! Havieis de ter visto, Majestade, como a retirada dos nossos esquadrões tapou a luz do Sol e trouxe uma longa noite antecipada para os Humanos ! Parecia o ataque a Pearl Harbour, mas ao contrário. Nunca antes se viu tamanha desolação e abandono. As pessoas deixaram de sorrir. Os baloiços enferrujaram nos parques infantis. Acabou o amor e o enlevo de papás e mamãs ! Ficai descansados, pais divorciados. Tereis a vossa liberdade, para poder faltar ao primeiro recital de violino da vossa filha ! Humanos, podereis fazer sexo à vontade dos mais baixos dos vossos instintos, sem receio de conceber ! Acabou a pouca vergonha de se ver mulheres a dar de mamar aos bébés em público ! Nunca mais uma mulher grávida dirá que está de esperanças, porque graças a nós deixará de haver Esperança ! Somos os capitães do desespero ! Não há rapazes maus ? Pois não, porque deixou de haver rapazes, maus ou bons ! Hahaha ! Se o melhor do mundo são as crianças, depreende-se que o pior são os adultos ; e acabando com os primeiros resolve-se o problema dos segundos. Acabaram promessas de futuro. O mundo velho e decrépito terá aquilo que merece, a incapacidade de se renovar pela substituição de gerações. A Humanidade será um jardim de musgo e hera, frio e húmido como um cemitério, sem a beleza e o aroma das flores. As crianças serão recordadas e a sua ausência chorada com tanta dor que os Humanos, o cancro e a peste da Natureza, sentirão a vontade de acabar com a sua miserável existência na Terra que não merecem. Só existe uma única e miraculosa salvação para a Humanidade : é que um dia regresse o Um ; Aquele que um dia, por Nascimento Milagroso, de Deus se fez Homem - para que o Homem seja mais divino."»

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os Animais : PAPAGAIO

PAPAGAIO "Permitam-me que me apresente. Chamam-me Johnny Dente-de-Jaguar, tenho 52 anos e vivo algures nas Caraíbas. Tenho um barco no qual transporto barricas de rum e esmeraldas, e visto que considero que a minha pátria é o mar, essas cargas - convenientemente - não pagam bilhete nem pagam passagem à saída nem no porto de destino. Às vezes também carrego jovens escritores e poetas tuberculosos e estropiados de guerras coloniais em busca do bom clima para as suas convalescenças que nem sempre todos desejam, incluindo eles próprios, e que por qualquer razão misteriosa acabam por se ver desembarcados em colónias de leprosos em busca de renovação de gerações e ressabiados com a Humanidade, e em ilhas dos Índios Arahucanos, que não têm problema nenhum em comer seres humanos nos meses sem "R". E hoje tenho um encontro marcado em Port-Royal. Com um papagaio. Entrei numa taverna que é ponto de encontro de piratas reformados, de olhos lacrimejantes devido ao fumo, que tudo o que anseiam agora é uma família de acolhimento para o Dia do Pirata, festa anual da pequena cidade de Barnegat, no Estado Americano de New Jersey. O pirata que eu procuro é um papagaio pirata. Pergunto à velha perneta, dona da taberna, se o viu. Ela abre a boca desdentada e, soltando gotas de saliva como um navio da Royal Navy cuspia balas de canhão, aponta com o único dedo da mão esquerda. A um canto, longe da matilha de velhos lobos-do-mar, com o rosto coberto pelo chapéu sebento de sal e luz de velas que herdara do Capitão Bloody Bartolomeo, lá estava o papagaio que eu quero adoptar para me acompanhar nas minhas viagens. Estou a ficar velho e cansado e quero reformar-me e ir para o Mediterrâneo, onde praticamente não há marés, mas há muitos ricaços e políticos de esquerda bem sucedidos nas suas actividades profissionais e que gostam de brincar ao Conde de Monte Cristo. A minha primeira desilusão foi verificar que o velho papagaio pirata, sentado à mesa, em vez de rum tinha à frente um pequeno cálice de licor de cereja. Disse-me que fazia bem à penugem, e que nos dias da sua juventude tinha uma plumagem tão exuberante que fazia inveja ao próprio Ney Matogrosso e que todas as araras da Amazónia faziam fila para ter sexo casual com ele. Depois de ir para o mar, elas queixaram-se que se calhar ele tinha uma em cada porto, o que até era verdade, e ele passou por anos de felicidade. Participou em inúmeras abordagens, dividiu incontáveis tesouros, esbanjou outras tantas riquezas, repetiu alegremente sentenças de morte e ordens para disparar sobre os mastros mais altos, onde enforcou traidores e pobres marinheiros que tinham o azar de ter mais tolerância ao álcool do que o capitão, cujo sabre de abordagem era tão afiado que cortava fatias de presunto tão finas e transparentes como radiografias. Mas o tempo foi passando e o papagaio foi envelhecendo. Foi perdendo qualidades e competências. Aos 35 anos já era velho para trabalhar no honesto negócio da pirataria, e o seu bico já não tinha força para morder dobrões para ver se o ouro era verdadeiro. Falsificou mapas de tesouro, onde o X marca mesmo o sítio, e assim ia sobrevivendo. Conseguia convencer turistas labregos e pesquisadores de tesouros crédulos e endinheirados. Foi seleccionado num casting para um filme de Hollywood, para um papel secundaríssimo, em que só dizia "Yaaarh!", cheio de clichés e olhos de vidro e pernas-de-pau. Trabalhou como segurança num bar junto à praia, onde antigas celebridades se reúnem para se ouvir em noites de recordações de sucessos discográficos. E agora, desiludido com o mundo, só deseja ir para uma loja de animais onde escute conversas de clientes e possa dizer as maiores barbaridades porque sabe que ninguém o levará a sério por ser um papagaio, e de onde possa ser resgatado a elevado preço, como César, e adoptado por uma família simpática, para cujos filhos rapazes ele possa recordar as suas aventuras. Em que ninguém vai acreditar, porque no tempo em que os animais falavam o Homem era ainda pouco mais que um animal."

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Reflexões 16 : RELATO DE UMA VICTIMA DE BULLYING ORTOGRAFOFÓBICO

RELATO DE UMA VICTIMA DE BULLYING ORTOGRAFOFÓBICO LOCAL : Lisboa, 13ª Esquadra HORA : 02h00... Entrei com passos titubeantes e sentei-me à espera. Passada uma hora, impaciente como uma mula, dirigi-me a uma portinhola sob a qual estava escrita a palavra Guichê, e fui atendido por um agente. Na parede atrás de si, ricamente emoldurado, o Prof. Malaca Casteleiro olhava-me severamente. - Ora então faxavôr de elencar pormenorizadamente e sem esquecer nenhum detalhe os acontecimentos que o trouxeram a esta Casa da Lei... - Sr. Agente, - comecei eu - fui victima de assalto... O simpático polícia levantou os olhos de um papel. - Foi o quê...? Bom, vamos começar pelo seu nome... - João El Desdichado Nobre, e ... O polícia interrompeu-me e gritou para se fazer ouvir na sala do lado. - Ó Silva ! - Hã ? - Está aqui mais um daqueles maluquinhos que gostam de Gérard de Nerval... - Ah ah ah - riu o seu invisível interlocutor - são duas de manhã, a hora a que aparecem os que se julgam acadêmicos... - Os palhaços do costume. A cultura devia ser proibida, só dá trabalho - confirmou o primeiro com enfado. - Data de nascimento ? - Vou fazer 46 annos de edade. Mas antes quero protestar porque estive uma hora à espera na recepção... - Aonde ? Fale português, homem ! Esperou na Receção. Receção, ouviu bem ? Prossigamos. Profissão ? - Sou trabalhador-estudante. Empregado de escriptorio e estudante de architectura. - Decididamente você tem o condómino de me irritar ! Chiça ! E o que aconteceu ? - Pois bem, estava eu a chupar um cigarrito antes da Sancta Missa na Igreja de Nossa Senhora da Assumpção, como se fosse o Raposão d´"A Relíquia", quando fui abordado por dois meliantes um dos quaes me furtou o relógio d´oiro que era d´o meu avô...roubaram-me o telephone, eu corri atraz d´elles, augmentei a velocidade, mas elles eram rapidos como athletas... O polícia perdeu as estribeiras. Levantou-se, empunhando ameaçadoramente um dicionário da Porto Editora. - BASTA ! Quem é que você julga que é ? Teixeira de Pascoaes ? Já para o calabouço ! Derrama lá as tuas "lagrymas" enquanto pensas porque razão "mysteriosa" é que lá foste parar ! Palhaço !

Micro ficção : AGÊNCIA DE EMPREGO PARA SUPER-HERÓIS E MUTANTES

AGÊNCIA DE EMPREGO PARA SUPER-HERÓIS MUTANTES Numa espécie de gabinete formado por biombos para esconder as diferenças sociais entre as pessoas mais do por comodidade ergonómica, um funcionário aguardou que o candidato mutante a emprego se sentasse. "Bom dia, candidato. Estou a ver que não arrastar a cadeira não é o seu talento ou poder mutante." Um pouco agastado com a observação, o candidato ajeitou a gravata por preservação do orgulho e fixou o olhar nos sapatos por modéstia, tudo ao mesmo tempo, decidido a não ceder facilmente. "Bom dia. Não, de facto não é. Estou aqui porque preciso de emprego. O meu poder mutante é encontrar políticos honestos. Nos dias que correm poderá talvez haver alguma oferta..." "Duvido" notou o funcionário sem verificar, mais por opinião pessoal não pedida do que por constatação da base de dados. "Mas deixe-me ver". Após alguns minutos penosos para o candidato mutante, em que o funcionário olhava o écran do computador e fazia sons como "hmmm..." ou "nã...isto não é para si", a conversa foi retomada. "Não. Lamento. Encontrar um político honesto é uma tarefa quixotesca. Você já o devia saber." "Nunca se sabe, sabe ? A perda da esperança é a mais cruel forma de privação da liberdade. Por favor, veja lá outra vez." "Não vale a pena. É mais provável um chimpanzé em frente de um piano rivalizar com a Maria João Pires do que ser encontrado um político honesto", compadeceu-se o funcionário. Mas continuou."Então e diga-me lá, não sabe fazer mais nada ? Há pessoas com várias aptidões, como aqueles jogadores de futebol que podem jogar com vários pés..." "Bom, a minha mãe sempre me disse que eu tenho talento para cantar estilo Frank Sinatra quando lavo a louça aos sábados à tarde, mas suponho que isso não conta para muito..." "Bem, deixe-me lá ver..." começou o funcionário e depois "...não, estava a fingir que ia ver. Não seja parvo, é claro que não há empregos nessa área, é um talento ridículo desde que foi encerrado o Serviço de Cultura do Departamento de Higiene e Aprovisionamento do Hospital Veterinário de Apoio aos Animais Domésticos dos Membros do Conselho de Ministros." "Ah...que pena..." lamentou o candidato. "Bem, talvez eu pudesse ajudar na recolha do lixo. Os meus poderes de controlo do magnetismo são fraquinhos, mas ainda deve dar para manipular à distância o eixo das tampas dos contentores..." "Não, isso também não é possível. Já viu as greves de cantoneiros que isso iria causar ? Os cidadãos precisam de ver o lixo recolhido mesmo que não façam nem queiram fazer a mínima ideia do destino que lhe é dado ; fazem a separação do lixo porque se sentem bem na sua consciência cívica que os faz considerar-se como se cada um deles fosse um militante honorário do Partido Ecologista Os Verdes. Esqueça isso. E que mais competências e poderes mutantes tem ?" "Pensando bem" reflectiu o candidato " sou capaz de olhar nos olhos de homens de meia idade assim a entrar para o calvo, e adivinhar se vão comparecer ou faltar ao primeiro recital de violino em que a sua filha vai participar, e também me acho útil na anulação dos poderes de outros..." "Pode dar-me um exemplo?" "Sim, posso." Passam alguns momentos. "Pensava que mo ia demonstrar..." "Pois. Com muito gosto. Tenho os sentidos super-apurados, sabia ? Sabia que a dois edifícios daqui, no elevador que desce para 4º andar, estão neste momento duas pessoas a discutir em português de Acordo Ortográfico ? Em que dizem sem qualquer tipo de pudor (!) que os naturais do Egito são Egípcios ?" "Caramba!" disse o funcionário, com o seu poder tanto de ser um super sacana como de se super impressionar "O emprego é seu !"

REFLEXÕES 15 : SOBRE O "ACORDO" ORTOGRÁFICO

ALEGRE E INQUESTIONAVELMENTE Ontem requisitei um livro numa biblioteca e hoje devolvi-o como se me sujasse as mãos. Estava escrito em acordês, e para mim foi uma decessão (se é assim que querem que se pronuncie, que seja assim que se escreve). Sou um católico simples, sem conhecimentos de exorcismo, o que é pena porque gostaria de saber que tipo de possessão demoníaca levou os pais fundadores do "Acordo" a conceber tamanho bastardo, que querem elevar à condição de verdadeiro e único filho legítimo. Pergunto a mim mesmo em quem se terá inspirado o criador deste monstro de Frankenstein linguístico. Provavelmente no comandante do Titanic, e depois na banda do navio que continuava a tocar no meio da tragédia. Peguei no dito livro e senti uma profunda pena, pegar num texto em acordês é como reencontrar na rua um velho amigo que foi amputado desnecessariamente por um médico charlatão que tenha estudado medicina com um curandeiro africano. Faz-me lembrar o laboratório de biologia do meu velho liceu, onde havia um frasco que tinha dentro um gato com duas cabeças : ficas com a sensação que por alguma malfadada intervenção do destino, algo correu mal e tens uma aberração. Aliás, o "acordo" ortográfico podia perfeitamente ser colocado num freak show, ao lado da Mulher-de-Barba e do Homem-Lagosta. E por falar em gatos, há dois tipos de pessoas em quem eu jamais confiaria para deixar o meu gato durante as férias : negadores do Holocausto e pessoas que aceitam alegre e inquestionavelmente o "Acordo". Não gosto de pessoas que, perante atrocidades, dizem que estão apenas a cumprir ordens. Dizer que o "Acordo" é bom português é como pôr o autor do quadro "O Menino da Lágrima" como director da Academia Nacional de Belas-Artes. Não gosto de gente que em vez de pegar no que é vil e tornar-lo ouro, faz o contrário sem pestanejar. Devolver livros em "Acordês" pode não mudar o mundo, mas não seria a primeira vez que a resistência vence sobre a banalização do mal, e do erro.