terça-feira, 15 de julho de 2014

Micro Ficção : CIDADE REVOLUCIONÁRIA

CIDADE REVOLUCIONÁRIA O visitante que chegasse naquele dia à cidade de Feonya depararia com um cenário de revolução. Tudo estava em estado de sítio, multidões ululantes apinhavam as ruas, saudavam as forças armadas do novo regime, e punham crisântemos nos canos das espingardas. Perguntando a um munícipe, o viajante depressa descobriria que o mapa administrativo e social da Cidade estava a ser redesenhado. Tinha ocorrido um golpe de Estado Sub-Cultural. Até esse dia, a cidade tinha sido governada por uma elite, a Gente Gira. Por exemplo, actores e actrizes de telenovela, estrelas de ténis de 4ª categoria, pessoas célebres por serem célebres e quejandos, pessoas com look - eram a aristocracia da cidade. Oprimiam tudo e todos com sorrisos de anúncio de pasta de dentes e vidas fantásticas de cruzeiros a Cancún, faziam-se fotografar com namorados e namoradas em relações endogâmicas inter-classistas, desprezando os que não eram ninguém, que não tinham o visual certo, que escapavam à definição de "cool". Havia contra esta gente inane uma raiva surda que justificava um ódio baboso ao que era bem sucedido porque era simplesmente belo. O brilho das luzes de néon de rua comercial, os manequins magrinhos nas vitrines, as roupas desenhadas por estilistas como se toda a gente tivesse o corpo que tinha aos vinte anos, um dia tudo explodiu. No dia anterior à revolução, reuniram-se facções em frente unida, em conclave secreto : As Raparigas Gordas Que São Boas Amigas e Confidentes juntaram-se aos Góticos Que Vestem Preto Mesmo no Verão e aos Rapazes dos Computadores e de Aparelho nos Dentes e Óculos, e planearam o golpe final. Os Rapazes infiltrariam os sistemas informáticos do Inimigo. Os Góticos circulariam pela cidade, espalhando o terror brandindo maças e machados tipo Senhor dos Anéis, e as Raparigas Boas Amigas e Confidentes passariam a divulgar toda a informação e segredos da Gente Gira, das amigas boazonas, dos amigos a quem permitiram uma queca de aniversário, dos desportistas de liceu que copiam nos exames. O golpe foi um sucesso. No dia da revolução, ao som da canção senha "We Are The Robots", da banda electrónica alemã Kraftwerk, a Gente Gira e famosa viu-se rodeada pelos antigos escravos do dever de respeitar a beleza pela beleza, intrinsecamente. Via-se apresentadores de TV fugindo para os montes e para o Brasil com as falsas jóias nas mãos ; jovens concorrentes de concurso de talentos tapavam a cara para esconder a beleza ; outros roubavam óculos aos pais para parecer inteligentes, abraçando entusiasticamente a nova raça dominante. O Conselho da revolução reuniu os Giros e Famosos no Terreiro do Paço, e foi deliberado um maciço auto-de-fé a quem não renegasse os antigos modos de vida. Foi decidido em votação popular de braço no ar que os Novos Feios e Desprezados jurariam fidelidade à cultura literária ou tecnológica, prometiam começar a ler livros e reflectir filosoficamente sobre o carácter efémero da Beleza Natural. E assim lentamente, muitas louras voltaram a ser morenas, nunca mais houve ninguém sem um par em discotecas e bailes ; acabou o terror de ver jovens endinheirados a ir para a escola em boas motos e carros descapotáveis para a faculdade ; as telenovelas passaram ser mais teatrais e realistas, sem mesas de pequeno-almoço repletas de frutos tropicais, e estabeleceu-se que haveria um sentido estético de estado, uma noção de beleza oficial, em que ninguém seria menorizado fosse pelo que fosse, e muito menos pelo valor da aparência.

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