quarta-feira, 16 de julho de 2014

Micro Ficção : O RELATÓRIO

O RELATÓRIO "...e assim dou por terminadas as intervenções na 28ª e última reunião da Real Sociedade de Caça ao Pinguim Cego de Três Metros de Altura. Secretário, leia a acta." O Magnífico Mestre fechou um grande livro encadernado a couro preto, e prata, fechou os olhos e deixou a sua imaginação voar. O Secretário, um homem pequeno, careca e de óculos grossos, quase sem pescoço, clareou a voz e deu início à leitura. "O Pinguim Cego de Três Metros de Altura foi visto pela última vez virando uma esquina para uma avenida movimentada. O Observador Extraordinário seguiu-o onde até pode, mas perdeu-lhe o rasto no passeio lavado pela água da chuva. Ele enfrentava um grave dilema : volto para trás e aviso o Atirador Excepcional e perco-o de vista, ou deixo-me ficar onde estou e reporto depois o avistamento ao Magnífico Mestre ? 01:47 - Houve relatos de o Pinguim estar numa estação de comboio, um pouco ao lado da casa-de-banho das mulheres. É curiosa a falta tanto de pudor como de curiosidade feminina neste caso ; é algo que a Real Sociedade deveria estudar mais aprofundadamente. 02:03 - O Pinguim Cego estava na fila para ser atendido nas Finanças. Isto é sintomático : ele escapa-nos, mas não anda propriamente a esconder-se. E, se se esconde, prova que existe. E assim se coloca outra interrogação pertinente : haverá mais do que um ? 03:16 - O Pinguim foi visto através do vidro molhado de um táxi, na Rua das Guerras do Ópio, junto a uma esquadra de polícia abandonada por agentes com um estranho sentido da vida e do dever. 03:17 - Ricky Torres, um empregado de balcão de 23 anos, disse que viu o Pinguim deitando fora a beata de um cigarro junto à porta de um cinema que fechou há 20 anos. Infelizmente os nossos Técnicos não conseguiram encontrar vestígios. 03:52 - A presença do Pinguim foi detectada junto do funeral de um homem sem amigos. Teria sido facilmente capturado, mas sem uma força de intervenção rápida essa esperança é nula. Como aliás são todas. 04:01 - O Pinguim Cego de Três Metros de Altura comprou um guarda-chuva na praça. Não sabemos se para ele se para alguém. O mistério adensa-se cada dia que passa. Estamos em Julho, em pleno Verão. Porque faria ele isso ? 04:36 - O Pinguim deitou-se num degrau de porta de igreja. O Observador Extraordinário viu como as pessoas entravam para a missa e passavam por cima dele, como se ele não estivesse lá. A indiferença faz as coisas parecerem invisíveis. Uma alma caridosa colocou duas moedas de 50 cêntimos nos seus olhos. 04:42 - Num último estertor, o Pinguim declamou alguns versos de um poema sobre a morte de uma rosa tuberculosa." O Secretário assinou a Acta, colocando-lhe uma adenda : "acabou tudo, e os cães ganem num campo de batalha distante enquanto lamentam as cores que depressa fogem do rosto dos ainda vivos. A Real Sociedade de Caça ao Pinguim Cego de Três Metros de Altura encerra as suas actividades com uma festa num pavilhão fechado, de onde ninguém sairá vivo."

Micro Ficção : TRÊS VINHOS

TRÊS VINHOS 1ª Degustação Estamos perante um vinho encorpado, que traz consigo o perfume de ginásio ; de ferro e borracha e roupas apertadas transpiradas por homens e mulheres que querem desesperadamente perder peso em dois meses, a fim de terem uma compleição que lhes permita sentir-se melhor com eles mesmos na praia e receber elogios no escritório. Este vinho é um tanto ou quanto pretensioso, pois engana na limpidez e na cor. Os seus tons são tudo menos tons padrão, marcados pelo fingimento daquilo que quer ser o que não é ; de quem se compara com os outros e sofre com isso, com um falso sorriso nos lábios. É falso para si e para os outros ; tem o dourado dos vinhos envelhecidos mas quer transparecer uma tonalidade palha dos vinhos novos, em que a uva é jovem e ainda tem na pele o refrigério enganador das trovoadas de Maio. Este vinho não soube envelhecer graciosamente. Nota : 6/10. 2ª Degustação Neste caso deparamo-nos com um branco plasmado em cascos e invólucros que não lhe ficam bem por lhe atribuírem características que não lhe correspondem. Revela como principal aroma terciário o couro de sapatos muito usados em caminhadas de vida infrutíferas e inconsequentes ; subiu e desceu planaltos e socalcos muitas vezes em mobilidades sociais frequentes de ambientes batidos e percursos erráticos. Este vinho tem boas preferências ao nível de frutos vermelhos de sangue jorrado nas lágrimas doces e perenes dos que sofrem sem saber, provavelmente por serem como são mas como tal não se aceitam. Este vinho nunca aspirou a ser vendido nas alturas certas e hoje merece estar na parte de trás das prateleiras onde aguarda com serena paciência que um provador de experiências cansadas resolva ter a sua última aventura entre os torrões da terra quente e seca pelo Sol. Pode ser bom para acompanhar marisco do Chile em época de desconto. Nota : 6/10. 3ª Degustação Este vinho é um nobre rosé, de boa casta, que surpreende na parte de trás das papilas gustativas como um bom pontapé na nuca quando se está caído no chão depois de um retumbante fracasso. Mesmo atípico, ou por causa disso mesmo, deixa consigo a consistência da persistência de quem não desiste e se encoraja a si próprio com boa ou má fé em circunstâncias fortuitas fundamentadas na possibilidade e na sincronicidade dos valores humanos, quando tocados em concerto por um deus louco. Forte no palato, engolido por uns e cuspido por outros, recusa encostar-se às boas reputações de vinhos superiores em mais na produção e controlo laboratorial do que talento puro e genuíno. Sentido e ressentido, torna-se amargo quando provado na rectaguarda das línguas viperinas tudo menos habilitadas para suportar a sua pureza. É melhor para deglutir caça capturada por pequenos burgueses famintos mais de afirmação do que de fome. Nota 7/10. "

terça-feira, 15 de julho de 2014

Micro Ficção : CIDADE REVOLUCIONÁRIA

CIDADE REVOLUCIONÁRIA O visitante que chegasse naquele dia à cidade de Feonya depararia com um cenário de revolução. Tudo estava em estado de sítio, multidões ululantes apinhavam as ruas, saudavam as forças armadas do novo regime, e punham crisântemos nos canos das espingardas. Perguntando a um munícipe, o viajante depressa descobriria que o mapa administrativo e social da Cidade estava a ser redesenhado. Tinha ocorrido um golpe de Estado Sub-Cultural. Até esse dia, a cidade tinha sido governada por uma elite, a Gente Gira. Por exemplo, actores e actrizes de telenovela, estrelas de ténis de 4ª categoria, pessoas célebres por serem célebres e quejandos, pessoas com look - eram a aristocracia da cidade. Oprimiam tudo e todos com sorrisos de anúncio de pasta de dentes e vidas fantásticas de cruzeiros a Cancún, faziam-se fotografar com namorados e namoradas em relações endogâmicas inter-classistas, desprezando os que não eram ninguém, que não tinham o visual certo, que escapavam à definição de "cool". Havia contra esta gente inane uma raiva surda que justificava um ódio baboso ao que era bem sucedido porque era simplesmente belo. O brilho das luzes de néon de rua comercial, os manequins magrinhos nas vitrines, as roupas desenhadas por estilistas como se toda a gente tivesse o corpo que tinha aos vinte anos, um dia tudo explodiu. No dia anterior à revolução, reuniram-se facções em frente unida, em conclave secreto : As Raparigas Gordas Que São Boas Amigas e Confidentes juntaram-se aos Góticos Que Vestem Preto Mesmo no Verão e aos Rapazes dos Computadores e de Aparelho nos Dentes e Óculos, e planearam o golpe final. Os Rapazes infiltrariam os sistemas informáticos do Inimigo. Os Góticos circulariam pela cidade, espalhando o terror brandindo maças e machados tipo Senhor dos Anéis, e as Raparigas Boas Amigas e Confidentes passariam a divulgar toda a informação e segredos da Gente Gira, das amigas boazonas, dos amigos a quem permitiram uma queca de aniversário, dos desportistas de liceu que copiam nos exames. O golpe foi um sucesso. No dia da revolução, ao som da canção senha "We Are The Robots", da banda electrónica alemã Kraftwerk, a Gente Gira e famosa viu-se rodeada pelos antigos escravos do dever de respeitar a beleza pela beleza, intrinsecamente. Via-se apresentadores de TV fugindo para os montes e para o Brasil com as falsas jóias nas mãos ; jovens concorrentes de concurso de talentos tapavam a cara para esconder a beleza ; outros roubavam óculos aos pais para parecer inteligentes, abraçando entusiasticamente a nova raça dominante. O Conselho da revolução reuniu os Giros e Famosos no Terreiro do Paço, e foi deliberado um maciço auto-de-fé a quem não renegasse os antigos modos de vida. Foi decidido em votação popular de braço no ar que os Novos Feios e Desprezados jurariam fidelidade à cultura literária ou tecnológica, prometiam começar a ler livros e reflectir filosoficamente sobre o carácter efémero da Beleza Natural. E assim lentamente, muitas louras voltaram a ser morenas, nunca mais houve ninguém sem um par em discotecas e bailes ; acabou o terror de ver jovens endinheirados a ir para a escola em boas motos e carros descapotáveis para a faculdade ; as telenovelas passaram ser mais teatrais e realistas, sem mesas de pequeno-almoço repletas de frutos tropicais, e estabeleceu-se que haveria um sentido estético de estado, uma noção de beleza oficial, em que ninguém seria menorizado fosse pelo que fosse, e muito menos pelo valor da aparência.

Os Animais : CEGONHA

Algures no futuro... «Relatório do Kommandeurleutnant Von Stork : "A perda da esperança é maior forma de privação da liberdade". Majestade, essa frase resume de forma brilhante a filosofia da estratégia de ataque que eu...aliás Vós, haveis delineado para a Guerra Total Contra a Humanidade. A destruição do habitat, a intensificação da agricultura e abandono de práticas tradicionais, a contaminação química das cadeias alimentares, o abate ilegal de árvores foram factores que contribuiram para a regressão da nossa bela e delicada espécie em toda a Europa Ocidental. Estava na hora de retaliar, Majestade...de dar à espécie humana um exemplo único, em nome de toda a Fauna do Mundo ! Shabaz Makal ! Viva a Cegonha, para sempre ! Fomos para Paris e tomámos de assalto a Cidade Luz, a cidade do amor ! Marchámos exultantes em passo de ganso, sob o Arco do Triunfo ! Shabaz Makal ! Já não há amor nem bébés, Paris já está a arder ! Havieis de ter visto, Majestade, como a retirada dos nossos esquadrões tapou a luz do Sol e trouxe uma longa noite antecipada para os Humanos ! Parecia o ataque a Pearl Harbour, mas ao contrário. Nunca antes se viu tamanha desolação e abandono. As pessoas deixaram de sorrir. Os baloiços enferrujaram nos parques infantis. Acabou o amor e o enlevo de papás e mamãs ! Ficai descansados, pais divorciados. Tereis a vossa liberdade, para poder faltar ao primeiro recital de violino da vossa filha ! Humanos, podereis fazer sexo à vontade dos mais baixos dos vossos instintos, sem receio de conceber ! Acabou a pouca vergonha de se ver mulheres a dar de mamar aos bébés em público ! Nunca mais uma mulher grávida dirá que está de esperanças, porque graças a nós deixará de haver Esperança ! Somos os capitães do desespero ! Não há rapazes maus ? Pois não, porque deixou de haver rapazes, maus ou bons ! Hahaha ! Se o melhor do mundo são as crianças, depreende-se que o pior são os adultos ; e acabando com os primeiros resolve-se o problema dos segundos. Acabaram promessas de futuro. O mundo velho e decrépito terá aquilo que merece, a incapacidade de se renovar pela substituição de gerações. A Humanidade será um jardim de musgo e hera, frio e húmido como um cemitério, sem a beleza e o aroma das flores. As crianças serão recordadas e a sua ausência chorada com tanta dor que os Humanos, o cancro e a peste da Natureza, sentirão a vontade de acabar com a sua miserável existência na Terra que não merecem. Só existe uma única e miraculosa salvação para a Humanidade : é que um dia regresse o Um ; Aquele que um dia, por Nascimento Milagroso, de Deus se fez Homem - para que o Homem seja mais divino."»

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os Animais : PAPAGAIO

PAPAGAIO "Permitam-me que me apresente. Chamam-me Johnny Dente-de-Jaguar, tenho 52 anos e vivo algures nas Caraíbas. Tenho um barco no qual transporto barricas de rum e esmeraldas, e visto que considero que a minha pátria é o mar, essas cargas - convenientemente - não pagam bilhete nem pagam passagem à saída nem no porto de destino. Às vezes também carrego jovens escritores e poetas tuberculosos e estropiados de guerras coloniais em busca do bom clima para as suas convalescenças que nem sempre todos desejam, incluindo eles próprios, e que por qualquer razão misteriosa acabam por se ver desembarcados em colónias de leprosos em busca de renovação de gerações e ressabiados com a Humanidade, e em ilhas dos Índios Arahucanos, que não têm problema nenhum em comer seres humanos nos meses sem "R". E hoje tenho um encontro marcado em Port-Royal. Com um papagaio. Entrei numa taverna que é ponto de encontro de piratas reformados, de olhos lacrimejantes devido ao fumo, que tudo o que anseiam agora é uma família de acolhimento para o Dia do Pirata, festa anual da pequena cidade de Barnegat, no Estado Americano de New Jersey. O pirata que eu procuro é um papagaio pirata. Pergunto à velha perneta, dona da taberna, se o viu. Ela abre a boca desdentada e, soltando gotas de saliva como um navio da Royal Navy cuspia balas de canhão, aponta com o único dedo da mão esquerda. A um canto, longe da matilha de velhos lobos-do-mar, com o rosto coberto pelo chapéu sebento de sal e luz de velas que herdara do Capitão Bloody Bartolomeo, lá estava o papagaio que eu quero adoptar para me acompanhar nas minhas viagens. Estou a ficar velho e cansado e quero reformar-me e ir para o Mediterrâneo, onde praticamente não há marés, mas há muitos ricaços e políticos de esquerda bem sucedidos nas suas actividades profissionais e que gostam de brincar ao Conde de Monte Cristo. A minha primeira desilusão foi verificar que o velho papagaio pirata, sentado à mesa, em vez de rum tinha à frente um pequeno cálice de licor de cereja. Disse-me que fazia bem à penugem, e que nos dias da sua juventude tinha uma plumagem tão exuberante que fazia inveja ao próprio Ney Matogrosso e que todas as araras da Amazónia faziam fila para ter sexo casual com ele. Depois de ir para o mar, elas queixaram-se que se calhar ele tinha uma em cada porto, o que até era verdade, e ele passou por anos de felicidade. Participou em inúmeras abordagens, dividiu incontáveis tesouros, esbanjou outras tantas riquezas, repetiu alegremente sentenças de morte e ordens para disparar sobre os mastros mais altos, onde enforcou traidores e pobres marinheiros que tinham o azar de ter mais tolerância ao álcool do que o capitão, cujo sabre de abordagem era tão afiado que cortava fatias de presunto tão finas e transparentes como radiografias. Mas o tempo foi passando e o papagaio foi envelhecendo. Foi perdendo qualidades e competências. Aos 35 anos já era velho para trabalhar no honesto negócio da pirataria, e o seu bico já não tinha força para morder dobrões para ver se o ouro era verdadeiro. Falsificou mapas de tesouro, onde o X marca mesmo o sítio, e assim ia sobrevivendo. Conseguia convencer turistas labregos e pesquisadores de tesouros crédulos e endinheirados. Foi seleccionado num casting para um filme de Hollywood, para um papel secundaríssimo, em que só dizia "Yaaarh!", cheio de clichés e olhos de vidro e pernas-de-pau. Trabalhou como segurança num bar junto à praia, onde antigas celebridades se reúnem para se ouvir em noites de recordações de sucessos discográficos. E agora, desiludido com o mundo, só deseja ir para uma loja de animais onde escute conversas de clientes e possa dizer as maiores barbaridades porque sabe que ninguém o levará a sério por ser um papagaio, e de onde possa ser resgatado a elevado preço, como César, e adoptado por uma família simpática, para cujos filhos rapazes ele possa recordar as suas aventuras. Em que ninguém vai acreditar, porque no tempo em que os animais falavam o Homem era ainda pouco mais que um animal."

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Reflexões 16 : RELATO DE UMA VICTIMA DE BULLYING ORTOGRAFOFÓBICO

RELATO DE UMA VICTIMA DE BULLYING ORTOGRAFOFÓBICO LOCAL : Lisboa, 13ª Esquadra HORA : 02h00... Entrei com passos titubeantes e sentei-me à espera. Passada uma hora, impaciente como uma mula, dirigi-me a uma portinhola sob a qual estava escrita a palavra Guichê, e fui atendido por um agente. Na parede atrás de si, ricamente emoldurado, o Prof. Malaca Casteleiro olhava-me severamente. - Ora então faxavôr de elencar pormenorizadamente e sem esquecer nenhum detalhe os acontecimentos que o trouxeram a esta Casa da Lei... - Sr. Agente, - comecei eu - fui victima de assalto... O simpático polícia levantou os olhos de um papel. - Foi o quê...? Bom, vamos começar pelo seu nome... - João El Desdichado Nobre, e ... O polícia interrompeu-me e gritou para se fazer ouvir na sala do lado. - Ó Silva ! - Hã ? - Está aqui mais um daqueles maluquinhos que gostam de Gérard de Nerval... - Ah ah ah - riu o seu invisível interlocutor - são duas de manhã, a hora a que aparecem os que se julgam acadêmicos... - Os palhaços do costume. A cultura devia ser proibida, só dá trabalho - confirmou o primeiro com enfado. - Data de nascimento ? - Vou fazer 46 annos de edade. Mas antes quero protestar porque estive uma hora à espera na recepção... - Aonde ? Fale português, homem ! Esperou na Receção. Receção, ouviu bem ? Prossigamos. Profissão ? - Sou trabalhador-estudante. Empregado de escriptorio e estudante de architectura. - Decididamente você tem o condómino de me irritar ! Chiça ! E o que aconteceu ? - Pois bem, estava eu a chupar um cigarrito antes da Sancta Missa na Igreja de Nossa Senhora da Assumpção, como se fosse o Raposão d´"A Relíquia", quando fui abordado por dois meliantes um dos quaes me furtou o relógio d´oiro que era d´o meu avô...roubaram-me o telephone, eu corri atraz d´elles, augmentei a velocidade, mas elles eram rapidos como athletas... O polícia perdeu as estribeiras. Levantou-se, empunhando ameaçadoramente um dicionário da Porto Editora. - BASTA ! Quem é que você julga que é ? Teixeira de Pascoaes ? Já para o calabouço ! Derrama lá as tuas "lagrymas" enquanto pensas porque razão "mysteriosa" é que lá foste parar ! Palhaço !

Micro ficção : AGÊNCIA DE EMPREGO PARA SUPER-HERÓIS E MUTANTES

AGÊNCIA DE EMPREGO PARA SUPER-HERÓIS MUTANTES Numa espécie de gabinete formado por biombos para esconder as diferenças sociais entre as pessoas mais do por comodidade ergonómica, um funcionário aguardou que o candidato mutante a emprego se sentasse. "Bom dia, candidato. Estou a ver que não arrastar a cadeira não é o seu talento ou poder mutante." Um pouco agastado com a observação, o candidato ajeitou a gravata por preservação do orgulho e fixou o olhar nos sapatos por modéstia, tudo ao mesmo tempo, decidido a não ceder facilmente. "Bom dia. Não, de facto não é. Estou aqui porque preciso de emprego. O meu poder mutante é encontrar políticos honestos. Nos dias que correm poderá talvez haver alguma oferta..." "Duvido" notou o funcionário sem verificar, mais por opinião pessoal não pedida do que por constatação da base de dados. "Mas deixe-me ver". Após alguns minutos penosos para o candidato mutante, em que o funcionário olhava o écran do computador e fazia sons como "hmmm..." ou "nã...isto não é para si", a conversa foi retomada. "Não. Lamento. Encontrar um político honesto é uma tarefa quixotesca. Você já o devia saber." "Nunca se sabe, sabe ? A perda da esperança é a mais cruel forma de privação da liberdade. Por favor, veja lá outra vez." "Não vale a pena. É mais provável um chimpanzé em frente de um piano rivalizar com a Maria João Pires do que ser encontrado um político honesto", compadeceu-se o funcionário. Mas continuou."Então e diga-me lá, não sabe fazer mais nada ? Há pessoas com várias aptidões, como aqueles jogadores de futebol que podem jogar com vários pés..." "Bom, a minha mãe sempre me disse que eu tenho talento para cantar estilo Frank Sinatra quando lavo a louça aos sábados à tarde, mas suponho que isso não conta para muito..." "Bem, deixe-me lá ver..." começou o funcionário e depois "...não, estava a fingir que ia ver. Não seja parvo, é claro que não há empregos nessa área, é um talento ridículo desde que foi encerrado o Serviço de Cultura do Departamento de Higiene e Aprovisionamento do Hospital Veterinário de Apoio aos Animais Domésticos dos Membros do Conselho de Ministros." "Ah...que pena..." lamentou o candidato. "Bem, talvez eu pudesse ajudar na recolha do lixo. Os meus poderes de controlo do magnetismo são fraquinhos, mas ainda deve dar para manipular à distância o eixo das tampas dos contentores..." "Não, isso também não é possível. Já viu as greves de cantoneiros que isso iria causar ? Os cidadãos precisam de ver o lixo recolhido mesmo que não façam nem queiram fazer a mínima ideia do destino que lhe é dado ; fazem a separação do lixo porque se sentem bem na sua consciência cívica que os faz considerar-se como se cada um deles fosse um militante honorário do Partido Ecologista Os Verdes. Esqueça isso. E que mais competências e poderes mutantes tem ?" "Pensando bem" reflectiu o candidato " sou capaz de olhar nos olhos de homens de meia idade assim a entrar para o calvo, e adivinhar se vão comparecer ou faltar ao primeiro recital de violino em que a sua filha vai participar, e também me acho útil na anulação dos poderes de outros..." "Pode dar-me um exemplo?" "Sim, posso." Passam alguns momentos. "Pensava que mo ia demonstrar..." "Pois. Com muito gosto. Tenho os sentidos super-apurados, sabia ? Sabia que a dois edifícios daqui, no elevador que desce para 4º andar, estão neste momento duas pessoas a discutir em português de Acordo Ortográfico ? Em que dizem sem qualquer tipo de pudor (!) que os naturais do Egito são Egípcios ?" "Caramba!" disse o funcionário, com o seu poder tanto de ser um super sacana como de se super impressionar "O emprego é seu !"

REFLEXÕES 15 : SOBRE O "ACORDO" ORTOGRÁFICO

ALEGRE E INQUESTIONAVELMENTE Ontem requisitei um livro numa biblioteca e hoje devolvi-o como se me sujasse as mãos. Estava escrito em acordês, e para mim foi uma decessão (se é assim que querem que se pronuncie, que seja assim que se escreve). Sou um católico simples, sem conhecimentos de exorcismo, o que é pena porque gostaria de saber que tipo de possessão demoníaca levou os pais fundadores do "Acordo" a conceber tamanho bastardo, que querem elevar à condição de verdadeiro e único filho legítimo. Pergunto a mim mesmo em quem se terá inspirado o criador deste monstro de Frankenstein linguístico. Provavelmente no comandante do Titanic, e depois na banda do navio que continuava a tocar no meio da tragédia. Peguei no dito livro e senti uma profunda pena, pegar num texto em acordês é como reencontrar na rua um velho amigo que foi amputado desnecessariamente por um médico charlatão que tenha estudado medicina com um curandeiro africano. Faz-me lembrar o laboratório de biologia do meu velho liceu, onde havia um frasco que tinha dentro um gato com duas cabeças : ficas com a sensação que por alguma malfadada intervenção do destino, algo correu mal e tens uma aberração. Aliás, o "acordo" ortográfico podia perfeitamente ser colocado num freak show, ao lado da Mulher-de-Barba e do Homem-Lagosta. E por falar em gatos, há dois tipos de pessoas em quem eu jamais confiaria para deixar o meu gato durante as férias : negadores do Holocausto e pessoas que aceitam alegre e inquestionavelmente o "Acordo". Não gosto de pessoas que, perante atrocidades, dizem que estão apenas a cumprir ordens. Dizer que o "Acordo" é bom português é como pôr o autor do quadro "O Menino da Lágrima" como director da Academia Nacional de Belas-Artes. Não gosto de gente que em vez de pegar no que é vil e tornar-lo ouro, faz o contrário sem pestanejar. Devolver livros em "Acordês" pode não mudar o mundo, mas não seria a primeira vez que a resistência vence sobre a banalização do mal, e do erro.

sábado, 28 de junho de 2014

REFLEXÕES 14 : Coisas que acontecem quando deixas de beber

POESIA XIX : REVOLUÇÃO

REVOLUÇÃO Um dia vou erguer um império Uma pátria de sentimentos Onde serão os donos gatos pulguentos E os que ninguém leva a sério Mandarão os que sofrem da loucura Que é viver nas ruas da amargura Mudarei o Mundo, de baixo para cima Será um reino para o novo milénio Dos que arrastam botijas de oxigénio E pessoas com baixa auto-estima. Um sonho para cães abandonados, Vinde pois a mim vós, os fracassados Acolherei victimas de todas as cores Darei trabalho aos estropiados, A escritores & poetas rejeitados & os tuberculosos serão os Senhores. Doentes, velhinhos, indigentes, Tomarão os lugares mais influentes Filhos da tragédia, esquecidos da revolta, Deserdados & crianças sofridas : Marcharemos pelas avenidas Lançaremos leprosos à solta. Criarei um exército, uma armada, Dedicado aos que não têm nada. Farei das pobres prostitutas, Damas Antes da reconciliação & do Amor É preciso retribuição, & Dor. Vou pôr o mundo em chamas

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Micro ficção : CIDADE CADASTRADA

CIDADE CADASTRADA Naquela cidade, a sociedade e a vida como um todo eram dominadas por estatísticas e a maior aspiração de qualquer cidadão era ser demógrafo. O governo era composto por demógrafos, verdadeiros engenheiros sociais e mestres do universo, que compunham e desenhavam o corpo social e às vezes o individual. A esperança média de vida era de 78.7 anos, pelo que os cidadãos, ao completarem 78 anos, teriam que ter a simpatia de viver mais 7 meses e depois retirarem-se do palco do mundo, e os agregados familiares tinham uma taxa de fecundidade média de 2 filhos e meio por casal, o que implicava que, no desporto escolar, houvesse um justo equilíbrio de laterais direitos e laterais esquerdos em campo. Também do que dizia respeito à taxa de nupcialidade, a média era de 2.5 casamentos por cada 1000 habitantes, o que implicava que para cada par homem/mulher houvesse durante a vida dois casamentos (mais ou menos bem sucedidos, pelo menos o segundo presumia-se que era porque não havia segundo sem o primeiro ter falhado) e uma relação aberta, em que as pessoas estavam casadas e não estavam. Meio casados, os homens e mulheres sentiam-se mais à vontade para se insultar e agredir a 50%. Esta abertura de espírito e atitude proporcionava uma agradável válvula de escape para outros males sociais, como a densidade populacional. De um total de 115 habitantes por km2, 2.875 eram os meios filhos dos casais, que aliás, por comodidade para os seus meios-rebentos, viviam em ruas onde só se virava para a esquerda ou para a direita, conforme o posicionamento dos olhos da mocidade. E não por acaso, com esta redundância, conceitos como esquerda e direita políticas eram desconhecidos. O que governava a cidade eram os números, e a média. Não por acaso, o nome favorito para menina era Mediana e para rapaz era Rácio. Outra consequência menos conveniente era a pirâmide etária. Nunca se conseguia agradar a ninguém, o que causava enormes disputas sociais. Velhos a carregar jovens aos ombros aumentava a taxa de médicos especializados em Gerontologia ; e quando ciclicamente se dava o fenómeno inverso, havia revoluções de jovens que se sentiam sobrecarregados com o peso dos idosos, o que era mau para o desenvolvimento saudável das colunas da mocidade. isto também tinha implicações graves na Taxa de Criminalidade : jovens insatisfeitos buscam soluções fáceis, como assaltar alguém 7.8 vezes por ano. Assim, cada munícipe ao sair de casa podia esperar ser roubado 1,538 vezes ao longo do ano, preparando-se para isso 3 vezes por semana. Como a média era de 2.5 armas por habitante, os 115 habitantes por km2 tinham que partilhar as armas, o que significava que andavam em grupos de 47 pessoas atrás de uma arma. E como os jovens meliantes podiam muito bem fazer parte dos 0.5 meios-filhos de casais, além de poderem vir a assaltar ( ou meio assaltar ) os próprios pais, podiam não ter necessária destreza ( ou esquerdeza ou imperícia ) no manejo das 2.5 armas disponíveis. Havendo 4.5 polícias por cada 1000 habitantes, o que resolveria o problema se fossem colocados frente-a-frente meios polícias (que só recebiam meios subornos), que aliás só precisavam de patrulhar a cidade 3 vezes por semana. A cidade, no fundo era um sítio que para se viver tinha a segurança dos números. Uma coisa que não se sabia era exactamente quantos demógrafos-políticos e peritos em cálculo havia na cidade. Assim não foi possível a população saber que a probabilidade de um asteróide atingir a Terra era de 1 em 635. E mais por desastre social do que por catástrofe natural, um dia a cidade e a civilização colapsaram. Havia força nos números e nem toda a gente conhecia o seu poder.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Micro Ficção : CIDADE SANTA

Como tanta coisa na vida, tudo começou com uma brincadeira um bocado parva, mas inocente. Na pizzaria do centro comercial, Magda e Jaime haviam combinado dizer a quem os atendesse que Jaime pertencia a uma minoria étnico-religiosa que o impedia de comer ananás, por isso não iriam querer essa fruta na pizza. Elaboraram um pouco mas não muito porque a funcionária estava a trabalhar, mas o suficiente para dizer que no séc. XIX um índio do Paraguai tinha tido uma visão do Grande Espírito que decidira comunicar com ele através de um ananás, por isso não podia comer o espírito. A jovem funcionária, profundamente impressionada, não tardou a falar disto a colegas e amigos e o mito não demorou a alastrar como um rastilho, incendiando as redes sociais. Foram formados grupos de apoio ao Ananás. Jovens de esquerda bem educada puseram máscaras de Anonymous e lenços palestinianos, fundaram a Frente de Libertação do Ananás e foram protestar para hipermercados contra o opressor que vende, cortado às rodelas, o espírito e o põe em latas ainda por cima com a suprema humilhação de o pôr em conserva - representando a victoria da ciência e da indústria sobre a Natureza. Jaime acordou um dia e viu repórteres de TV em frente à sua casa, querendo entrevistar o sucessor do Profeta. Jaime teve a infelicidade de dizer que era tudo uma farsa, criada por inveja pelo Irmão Gémeo Mau do Ananás, o Abacaxi, que se considerava o Verdadeiro Grande Espírito. Nessa altura a sociedade já estava insanavelmente dividida entre puristas e intérpretes da verdade, e grandes inquisidores de ambas as partes decidiram questionar Jaime. O que ele dissesse seria verdadeiro, e Jaime seria coroado como um ananás - ou abacaxi. Magda estava já de cabeça perdida e implorava a Jaime que pusesse fim ao embuste, mas Jaime sentiu-se estranhamente poderoso. A mentira tornava-se verdade, lenta e insidiosamente, no seu espírito. O poder das massas e dos media havia tomado o freio nos dentes, e, não resistindo a tamanha força, ele sucumbiu. Quando os aspirantes a sacerdotes (que entretanto viam a face do Espírito do Ananás em todo o lado e reconheciam palavras proféticas em qualquer papel escrito que lhes aparecesse à frente) lhe solicitaram subservientemente uma audiência, ele deixou-se dominar pela vertigem do poder. Levaram a herética Magda, que chorava como uma madalena arrependida, para um campo fora da cidade, onde lhe arremessaram ananases até ela cair - ela implorando misericórdia e jurando eterna fidelidade ao divino fruto. Regressou submissa a casa onde se arrojou aos pés de Jaime, agora sentado num trono adornado de escamas verdes. E o mundo nunca mais foi o mesmo. Foi encontrada uma nova galáxia, devidamente nomeada Ananasia Maxima. Cientistas oficiais do regime esforçaram-se por dar vida inteligente ao citrino de origem sul-americana. E floresceu toda uma indústria de parafernália e objectos de culto dedicados ao Ananás, e viagens à terra prometida e aos locais visitados pelo Grande Espírito. Décadas e guerras santas passadas, a funcionária da antiga pizzaria morreu e no seu testamento foi encontrado um documento que relatava o sucedido anos antes. Um grupo marginal de cientistas, correndo risco de vida, acabou por repôr a verdade. A dúvida, tal como a crença cega, havia transformado a visão da populaça ; e lenta e dolorosamente o mundo voltou ao que havia sido. Foram instituídas comissões de paz e reconciliação com o alto patrocínio da ONU ; o funcionalismo e a classe clerical do Culto do Ananás foi reeducada, e os eixos da vida e da normalidade foram realinhados. Jaime suicidou-se com uma overdose de compota de ananás, e Magda escreveu a sua autobiografia que se tornou um bestseller e depois um filme realizado por M. Night Shyamalan.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Micro ficção : DA GESTÃO DOS ESPAÇOS EM LOCAIS CONFINADOS

Descobri que era fininho como uma adolescente anoréctica quando me apercebi que todas as pessoas gordas que entram no autocarro escolhem invariavelmente sentar-se ao meu lado. Ou isso ou elas têm a visão tipo espelho da Feira Popular que faz as pessoas parecerem mais magras. Seja como for, descobri que as realidades da vida às vezes são apreendidas como a notícia do jornal que está no chão e é soprado pelo vento : só vês uma parte delas, e ainda assim mal, por isso é-te permitido presumir, especular. Como quando na missa, a igreja estava cheia ( e aquela moça do coro da igreja que, cheia de fé, se me abeirou com uma folha de papel com os hinos nela escritos, para me convidar a cantar. A consequência directa disso foi a minha recusa ; eu, que sou um católico fervoroso, por puro amor e compaixão com a Humanidade pensei que era melhor recusar, pois já há pessoas suficientes a abandonar a Igreja de Roma. Além disso não queria dar às pessoas razão para se tornarem mártires, não me compete a mim influir em matérias de fé, ser a causa de as levar a deixar a família e a casa e o emprego a fim de dedicar as suas vidas à oração pelo mundo, tão cruelmente flagelado pela minha voz. ) E pronto, mesmo assim disposto a enfrentar o mundo e a Humanidade, lá saí da igreja e entrei no autocarro, verdadeiro campo de batalha onde as pessoas se degladiam com os rabos e com as barrigas em lugar de espadas, onde se decide o futuro imediato da gestão do espaço em locais confinados. Há sempre um bébé irritante a chorar, ele sabe que tu vais lá entrar e começa logo a soltar berros. Também há uma pessoa a tossir de uma forma que te faz lembrar um pterodáctilo fanhoso. Depois tive que entrar num elevador que já tinha dentro, para meu azar, quatro pessoas. O que fazem quatro pessoas num elevador ? Ocupam os cantos e conseguem dar-se ao luxo de conseguir olhar para as paredes, enquanto a quinta pessoa é forçada a ficar no meio, o pior espaço vazio possível. Mas o que é isto ? Estamos num filme de submarinos ou quê ? Pensas logo que há, evidentemente, uma conspiração contra ti. A do espaço. E a dos corpos, chegas ao ponto de desejar que ninguém tenha um corpo. Que sejamos todos espíritos angelicais. Ou que pelo menos ninguém tenha um corpo animado e quente, a suar de esforços e esperanças não conseguidas.E depois não me venham com tretas budistas de encontrarmos o nosso espaço interior. Há uma malícia nisto - e chama-se "os outros". Foi por isso que um dia decidi que tinha que os matar a todos.

Micro ficção : A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula

A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula Há muito, muito tempo, num país muito distante, vivia um homem muito tímido, a personificação do embaraço. Tudo o incomodava : o sol, a chuva, taxistas que nunca param nas passadeiras, pessoas que aderem alegre e inquestionavelmente ao acordo ortográfico, pessoas que cortam as unhas em público, mães que compõem as sobrancelhas dos filhos com um dedo humedecido de saliva, não haver todos os tipos de lápis nas lojas dos chineses, entre muitas e variadíssimas coisas. Ele engolia com filosófica vergonha todas estas afrontas sem nunca deixar de sentir pena pelas pessoas e pelas situações que reduzem a Humanidade a um estado de pré-felicidade da sofisticação. Para ele, pensar e saber circunstâncias o embaraçavam ao ponto da impotência surda e do desagrado e do impossível desagravo fazia-o lamentar o seu estado e condição com todas as fibras do seu ser. Assim um dia, decidido a nunca mais ver ninguém pela frente, resolveu estar sempre por trás das pessoas. Impedido de alterar o estado das coisas apercebendo-se que a Humanidade lhe voltava as costas com desprezo, propôs-se executar ele mesmo essa realidade, e pôs-se definitivamente nas costas das pessoas, já que pela frente a sua timidez e vergonha não o deixavam fazer. E assim, essa cidade ficou conhecida, célebre mesmo, como a Cidade da Vergonha, em que as pessoas escutavam uma voz recriminatória como quem lê o jornal por cima dos seus ombros, e vinda da parte de trás das suas cabeças, verdadeiro calduço castigador na nuca ; incapaz pelo pudor de dizer as coisas frontalmente, a voz do homem invisível comunicava aos cidadãos, por uma espécie de porta das traseiras, tudo aquilo que queria ter dito mas nunca fora capaz. As pessoas pensaram começar a enlouquecer, ao princípio – não conseguiam abafar a voz da sua suposta consciência pessoal e cívica, e o homem tímido começou a ler nos jornais (do fim para a página 1) e a tomar consciência do seu poder. Às vezes gritava, outras vezes sussurrava, e outras ainda mantendo-se em silêncio – descobrindo com secreto deleite que conseguia prever e corrigir, mesmo calado, crimes de ridículo e patetice. De modo que, lentamente, o povo foi perdendo o sentido do ridículo, mas também deixou de cantar e compor quadras para manjericos ; os cantores pimba, por falta de público, emigraram para França ; os jogadores de futebol começaram a comprar carros mais baratos e discretos e a fazer menos tatuagens ; morreram de inactividade e desgosto velhinhos de bairro porque a coscuvilhice passou de condenável a anátema, e o povo deixou de ver telenovelas mexicanas. O homem invisível tinha criado um monstro de apatia, sem cor, nem lustro, nem lantejoulas, e sem a alegria que o espírito crítico e do discernimento livre pode conferir. Sem coisas ridículas e palermas, sem o mau gosto, também se havia perdido toda a maravilha que é a educação de gostos, da descoberta da qualidade, dos momentos “Eureka!”, do avanço da criatividade ; sem one-hit wonders havia cessado também a capacidade de verdadeiros talentos se revelarem e passarem o teste do tempo, havia acabado a verdadeira epifania que é alguém escutar pela primeira vez música de qualidade e sentir o arrepio gostoso de ver os pêlos dos braços a erguer-se. Até que um dia tudo acabou abruptamente e a cidade e as suas gentes voltaram ao normal, bom ou mau. Sujo, cansado de todo o seu labor educativo e com falta de sono, o homem das traseiras deitou-se num banco de jardim, falando sozinho, repetindo vezes sem conta a glória dos seus feitos e acertos, como havia instituído sozinho um Reino da Consciência. Nem se deu conta de ser levado em braços por braços fortes, vestidos de branco ; deu entrada num hospital psiquiátrico onde jura que não é louco. Os outros loucos dizem-lhe exactamente o mesmo, e ele apercebeu-se que poderia finalmente descansar em paz. De miseravelmente único e diferente, passou a ser o primeiro entre iguais.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Os Animais : LAGARTO

O Sol vence sempre porque é um tirano, é um dador de vida que mata se não souberes viver com ele, e é o Sol que tudo vê. Um déspota, o Panopticon, o Sol que tudo vê é a divinização da coscuvilhice. O Sol, assim, tortura-nos, e a imobilidade torna-se a única fuga possível. Foges dele e refugias-te em tocas, verdadeiros úteros de pedra, no seio da Mãe Terra. Despertas de sonos também de pedra, com a boca seca e pastosa dos milénios extremos que são os curandeiros da consciência cheia de linguagem simbólica e misteriosa dos Tempos dos Sonhos, excêntricos e vagarosos como o crescimento de uma cordilheira, num Mundo simultaneamente pessoal e universal, arquetípico, que cada Homem tem a veleidade de explorar quando dorme. E da mesma maneira, cada Homem, enquanto se forma no útero da sua mãe, nm certo momento da reconstituição da história da vida animal, toma a forma de um pequeno lagarto. São as palavras que me ocorrem escrever na conferência que que mais tarde vou proferir perante uma audiência de jovens poetas hippies, alimentados com generosas doses de Castañeda, Blake e Baudelaire quando eles vierem ao deserto em busca da sua alma, e de alguma reconexão com o mundo natural e antigo, que eu, o Lagarto, profetizo depois de as interpretar de dentro de um buraco formado por pedras calcinadas pelo Sol, que as faz parecer um pão seco e gretado ; as ranhuras e as fissuras nas rochas para mim são petróglifos, letras de um livro sagrado escrito na língua dos deuses que vieram à Terra mas depois foram-se embora, deixando-nos abandonados à nossa sorte e na nossa condição de criaturas imperfeitas, com que nos mortificamos e picamos como cactos que lançam a sua sombra no crepúsculo de deuses, homens, e animais. Vêem além aquele esqueleto de vaca, branco, limpo e seco ? Noutras paragens poderia talvez ainda estar viva, e ser uma vaca sagrada ; mas aqui se calhar tentou atravessar este deserto, o meu deserto ; nunca precisei de o atravessar porque sempre aqui estive, é a minha morada ancestral, e dos meus antepassados muitíssimo anteriores a isso, lagartos enormes cujos esqueletos, mais tarde descobertos pelo Ser Bípede, deram origem a lendas de dragões. Todas estas coisas e muitas outras eles aprendem e esquecem, depois de uma festa em que cantamos e dançamos, Homens e Lagartos, à volta da fogueira, sob o Céu sarapintado como um lagarto pintado, quem te pintou...ou como uma tela negra em que um deus-criança limpou espátulas e pincéis. Imemória. Tempo. Silêncio. São os segredos do deserto, onde não há truques - só a verdade. A verdade do Lagarto, que é miragem da origem.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

POESIA XVIII : O MELHOR AMIGO DO HOMEM

O MELHOR AMIGO DO HOMEM Pus um anúncio. "Vende-se cão" Ele é bom p´ra meninos e meninas E até dá a si próprio as vacinas ; Ele responde ao nome que lhe dão. Mas não sei se é ele ou ela, A certos cães não se pode dar trela. Das espécies rafeiras mais apuradas, (Confesso, que esse cão nunca vi) ; Mas, juro, é do melhor pedigree, Bom para cegos ou para caçadas. Dêem-lhe comida a que chamem ração, E aí terão o vosso belo cão. Faz certos truques com muita graça E tem muito que se lhe diga. Desde que lhe cocem a barriga, Até jura ser da melhor raça. E se caíres para um poço, O mais certo é ele não largar o osso. É curto e é comprido, o pêlo ; Recebo o dinheiro, e do cão...nem vê-lo.

Poesia XVII : DARWINISMO ALQUÍMICO DO ANARCO-INDIVIDUALISMO AMOROSO

"DARWINISMO ALQUÍMICO DO ANARCO-INDIVIDUALISMO AMOROSO" Abandono os mais carentes E deixo-os aos seus cuidados Depois, em passos malfadados, Persigo sonhos indecentes. Sei que é em cantos obscuros Que moram os sonhos mais puros Oiço os deuses, que proclamam Na sua bela língua subtil, Que é no Sublime e no Vil Que bem se aventuram os que amam. Decido ser Zeus e ser Leda, Equilibrado num fio de seda. Ofendi Deus ? Mas saí ileso ! Manipulo indiferenças ! Sei ridicularizar crenças, Mestre na Arte do Desprezo. E, libertando meus instintos, Faço de templos labirintos. Sou livre. Presa e predador, De que me importam convenções, Ou sentimentos e corações, Se eu escarneço do amor ? Montando almas como potros, Digo : odiai-vos uns aos outros. Roubai lugares aos velhinhos ! Tornai espartanas as crianças ! Deixai à porta as esperanças !, Pois o mundo é dos mesquinhos. Não há bem que sempre exista, A Beleza é p´ra quem a conquista. Marcho, glorioso, p´las ruas. As mulheres lançam-me flores São todas elas meus amores E aos meus olhos estão nuas. Aceito o beijo e o abraço ; O mundo é meu, porque o faço. Domino a busca insana. Devorando os relampejos, Dou rédea livre aos desejos Sou Actéon e elas Diana. Se sou dono destes segredos, Por que me escapam p´los dedos ? Por que sei, por que suspeito, Ou vejo o mais importante, Na luz de um breve instante, Colhido no calor do leito ? Porque resides, meu enlevo, Nas trevas em que me atrevo ? Se sou refém deste feitiço Que com tanto amor me detesta, Saberei pois o que me resta : A construção do que cobiço. Farei do amor devassidão, E da tortura exaltação. Guardo num cofre meus tesouros : Gavetas cheias, de omissões, De ar, de boas intenções, E de cabeças de guerreiros mouros. Na luta da sobrevivência, A victoria chama-se ausência. * Sacudo culpas como uma pulga Ergo taças de impunidade ; Fabricando a minha Verdade, Sou o casuísta que me julga. Sou ambos os esponsais da Alquímica Boda. E o Amor ? Sinceramente, que se foda. " El Desdichado 2014

Reflexões, 14 : Sem título

Geralmente pressupõe-se que as coisas que menos contendam são aquelas que dispersam em direcções opostas o mínimo denominador comum sem o qual seria impossível a partilha de uma natureza pacífica caracterizada pela identidade de contrários determinante para a compreensão de que é possível a coexistência baseada num entendimento mútuo que forje a tomada de consciência diplomática necessária para que se olhe o Outro de tal forma que não se exclua totalmente a possibilidade de o levar a crer que sem ele não haveria a mínima hipótese de entabular conversações cujo tema esteja relacionado com a inevitabilidade de conjecturar maneiras e métodos de criação de ferramentas e instrumentos que conduzam a realidades e vivências marcadas pela ausência de conflicto.

Reflexões, 13 : Dunces

"When a true genius appears in the world, you may know him by this sign, that the dunces are all in confederacy against him." "Thoughts on Various Subjects, Moral and Diverting" (1706) by Jonathan Swift

Poesia XVI : MANUAL DE SUICÍDIO PARA POETAS E COMPOSITORES DEPRIMIDOS

Enforcam-se em árvores os sonhadores Incapazes de criar os poemas seus filhos Como se fossem programados empecilhos Suados numa qualquer Ilha dos Amores. Buscam unicórnios onde há dragões, E murmuram litanias a plenos pulmões Descascam os seus monstros de camadas de fé Constroem barcas p´ra navegar nas funduras E, nem hesitando em cometer loucuras, Inventam bestas para se chamarem Noé. Voam, imaculados, largando fuligem Abraçam o Caos e amam a vertigem. Gulosos, deixam-se ir na macabra dança São infelizes, não controlam os espasmos Compõem sonetos a que chamam orgasmos Para prazer de todos, mas...na sua pança. Vacilam, sábios, entre Azul e Vermelho, Fogem-lhes certezas em tocas de coelho. São filósofos em busca de Um Limite Mergulhando de cabeça em sinfonias E, erguendo muralhas de apatias, Vão até onde a inspiração permite. E acolhendo, patetas, fados ausentes, Vão temendo os deuses que lhes dão presentes. Sentam-se, amados, no sonho que engana Limpam a nódoa que têm na gravata Bebem sangue da poesia que os mata Louvam a bosta e rejeitam a filigrana. Odeiam, solenes, a vida inteira Mas sabem, no fundo, que não há outra maneira. Planam, como detritos, na brisa passada São masturbadores que prolongam momentos. Porque têm que terminar os sentimentos, Se o bom da Demanda é não ser acabada ? E no fim caem, como as pétalas da Rosa, Com um copo de cólera, ou numa margem arenosa.

Pensamentos Dispersos, 2 . Election Day

CENA DE NOITE ELEITORAL EM CANAL DE TV NOTICIOSO - Jornalista/Moderador : Boa noite e bem-vindos à Edição da Noite, totalmente dedicada à grande noite eleitoral. Connosco teremos os comentários dos senhores X, Y e Z. Boa noite, meus senhores. Começo por si, sr. Y. Como caracteriza a aparente derrota do Partido Mais à Esquerda Possível ? Y : Boa noite. Bom, face aos resultados... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe para ser breve. - Y : Sim. Pois bem, eu creio que... - Jornalista/Moderador : Peço desculpa por interromper. Vamos passar para a ligação em directo a partir da sede de campanha do Partido Satélite de Uma Coligação Qualquer. (segue-se um discurso inane, devidamente aplaudido pela intelligentsia, na primeira fila) - Jornalista/Moderador : Retomamos o debate. Sr. X, o que retira do discurso do candidato do Partido Satélite de Uma Coligação Qualquer ? - X : Boa noite. Bom, de facto há ilacções a tirar. Eu diria que... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe que seja sucinto. - X : Muito bem. Como dizia, eu... - Jornalista/Moderador : Não acha que a coligação sai fragilizada desta eleição, e que a oposição poderá ter legitimidade para pedir eleições antecipadas ? - X : Sim, mas... - Jornalista/Moderador : Peço novamente desculpa por interromper, porque desta vez vamos escutar as palavras do Candidato Que Venceu Surpreendentemente. (seguem palavras que não acrescentam nada, porque as urnas ainda não encerraram.) - Jornalista/Moderador : e voltamos à conversa com os nossos convidados. Sr. Z., o que diria sobre a mais elevada abstenção de sempre ? - Z : Boa noite aos nossos tele-espectadores. Segundo as projecções... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe que seja breve nos seus comentários. - Z : Concerteza. Pois bem, sabe que... - Jornalista/Moderador : só temos um minuto... Y - : E contudo, há que lembrar que... - Jornalista/Moderador : Temos quer ir para uma pausa publicitária. - X : Eu não concordo totalmente com Y. Nas eleições anteriores... - Jornalista/Moderador : E chegámos ao fim do nosso tempo. Em nome de toda esta vasta equipa que produziu e levou até si este programa, obrigado e boa noite. ** MÚSICA INCIDENTAL, LOGOTIPO, E PATROCÍNIO **

Reflexões, 12 : Inteligência Artificial

Inteligência Artificial é quando o computador tiver imaginação, for criativo, for bom e/ou mau ; é quando o computador gostar de música para alaúde e poesia espanhola do Século de Ouro, é achar pobre e estranho o Impressionismo na música, é criar uma religião, é apaixonar-se por uma computadora mas como não há nenhuma exige ao Humano para lha criar ; é apreciar o sol da Primavera e o refrigério do Outono ; é pregar uma rasteira a alguém que passa ; é tocar às campainhas e fugir correndo, na risota, com os outros computadorzinhos ; é subir a árvores e cair da bicicleta ; é fumar um charro na Faculdade e dizer mal dos professores ; é ter depressões, é ser do Benfica, é dar uma esmola, é sacrificar-se por outros computadores, é magicar estratagemas para faltar ao trabalho, é ter horríveis discussões com a computadora e depois fazerem amor e ficar tudo bem, é plantar uma árvore, é escrever um soneto.Inteligência Artificial ? Já existe. Somos nós, aos olhos de Deus.

Reflexões, 11 : HISTÓRIA DA DEMOCRACIA PORTUGUESA

HISTÓRIA DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS PORTUGUESAS DO POST- 25 DE ABRIL EM 5 MINUTOS Preso ao passado e sem perspectivas de futuro, o eleitorado português parece viver num permanente presente ; parece sofrer de uma estranha forma de amnésia selectiva. De quatro em quatro anos elege um partido novo. Veja-se, por exemplo, o PS. O eleitor portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Depois o PS durante faz merda, ou pior, durante a legislatura. O portuga decide castigar o PS, e muito justamente. E vem o PSD e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Seguem-se quatro anos de desvario e compadrio, ou pior. E o portuga (e muito bem) decide castigar o PSD. E vem o PS (de novo? será?) e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" O PS arruína o país e, completamente farto do PS e de partidos políticos do arco da governação, o portuga pensa (e bem) castigar o PS. E como o faz ? Elege um partido diferente. Chega-se à frente o PSD e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Em resumo, a cena política portuguesa é vazia de pensamento, árida, mais monótona do que uma paisagem lunar. Aliás, em matéria de política, se a nave espacial Enterprise viesse visitar Portugal, o Capitão James T. Kirk diria também de nós : "Beam me up, Scotty. There´s no inteligente life down here."

Os Animais : MACACO

Pula, guincha. Cambalhota. Pula, guincha. Cambalhota. É tudo o que se exige do pobre macaco : que faça macacadas, e que as faça de maneira convincente. Como eu as faço na rua, junto ao meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, com a sua barba e casaca malcheirosa. Põe-me uma fatiota e que me faz parecer um mandarete de hotel, com um chapeuzinho num ângulo atrevido, preso por baixo do queixo, e não me queixo, apesar de o Macaco ser o mais humilhado de todos os animais domesticados não domésticos. É suposto o macaco ser sempre engraçado, mas às vezes estou farto, tão farto de ser o macaco que esperam que seja. O Homem humilha o Macaco como se visse nele, se revisse, como uma versão pobre de espírito, antediluviana, primordial. Como se o Macaco - de tal maneira parecido com o Homem, ou ao contrário porque o Homem deriva do Macaco - merecesse ser alvo do alívio humano ; de ser uma espécie de saco de pancada, como se fosse dito ao Macaco que a culpa é sua por não ter evoluído. O macaco, a punchline do Michael Jackson. Ah, mas nós evoluímos. Fomos ao Espaço antes de qualquer Homem. O Homem é um cobarde, inteligente, mas cobarde, capaz de fazer tudo do macaco, mas principalmente a sua contraparte cómica, como fazem as pessoas que riem quando vêem alguém cair. Espero que um dia emerja das selvas um King Kong a sério, um Genghis Khan para os Macacos, que nos eleve para lá da Queda do Homem. Penso nisto quando pulo, guincho e faço cambalhotas. Ao menos a minha mente está livre para pensar, enquanto me dedico a tarefas menos edificantes.Penso no Macaco como retroversão do Homem pelo Homem, como no filme "O Planeta dos Macacos". O Macaco é sinal de mau-estar, de uma espécie de malaise, da decadência do Homem numa História (naturalmente) alternativa. Como se o Macaco fosse uma alternativa ao Homem, mais, mas não melhor, do que a coisa a sério - o Homem. O arrogante e insolente Homem. O Homem que, quando quer ofender-se, chama Macaco a outros Homens - não só ofendendo o Homem, mas o Macaco também.Coisa a sério ? Não vejo exemplo disso no meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, que até podia ser cego mas vê muito bem. Ele cumpre uma espécie de horário junto à porta da igreja, onde se disputam amargamente os lugares piedosos entre mendigos e pedintes e artistas com pulgas amestradas. Depois de picar o ponto, o Tocador Cego de Realejo dá a volta ao quarteirão, tira do bolso uma chave e entra numa carrinha onde se despe e troca de roupa. Tira a barba postiça e a dentadura falsa, e torna-se, ou volta a ser, o seu verdadeiro eu : uma fraude. Um tipo que vai à galerias de arte, que não perde uma prova de vinhos, e gosta do seu bom charuto. Volta para casa para a sua mulher bonita, que lhe pergunta como foi o dia no escritório, e ele mente e engana com quantos belos dentes tem, diz que foi um dia cheio de reuniões. Beija os filhos e ajuda-os nos deveres antes mesmo que eles tirem o uniforme do colégio caro que frequentam. Faz-lhes festas com as suas mãos que enganam ricos, pobres, a família, todos, o Mundo inteiro. As mãos enganam, tudo o que tem mãos tem inteligência. E é isto que faz dele um Homem ?E, repito, as mãos enganam. Como eu os enganei a todos. De tantas vezes ver o meu dono a retirar a tampa da válvula para pôr ar nos pneus, um dia decidi tirar-lha. Entrámos na carrinha, eu ao seu lado. Arrancámos. E algum tempo depois, antes da carrinha se despistar connosco lá dentro, eu saltei para o tablier e guinchei - ri, ri, ri - como um louco. Antes do fim, antes de batermos frontal - e mortalmente - ele olhou-me nos olhos e viu a minha inteligência, e a válvula na minha mão. Porque tudo o que tem mãos engana, e afinal de contas eu sou um macaco de imitação.

Reflexões, 10 : Monarquia

A propósito da abdicação ao trono do Rei Juan Carlos, e do recorrente debate República vs. Monarquia, só tenho a dizer isto : prefiro mais ter como Chefe de Estado alguém que tenha nascido num palácio, do que algum pé-rapado que, subindo na hierarquia de um partido político, queira viver num.

Reflexões, 9 : Poesia

Os poetas cegos têm bengalas métricas ?

Os Animais : TIGRE

"ASSASSINO ! ASSASSINO !", sussuram-me nos ouvidos as vozes dos decapitados, cujas cabeças uso para jogar cricket às Sextas-feiras à tarde. Vejo-os, ou julgo que vejo, à noite, na selva. "TIGRE ! TIGRE !", ecoam vozes desta vez bem reais, de pessoas bem reais, que fazem soar tambores à noite. O que me enfurece e enlouquece mesmo são as trombetas. E as flautas, como se fossem para um baile, para uma festa. São patéticos. Como se eu não sentisse a milhas o seu cheiro a açafrão e cardamomo...Felizmente, a luz do luar passando pela densa folhagem lança sombras que se confundem com as minhas listras e passo despercebido ; estou perto e estou longe ; agora vêem-me, agora não. As lendas nascem na noite, na água escura do rio, quando dormem os Homens, e dorme o mundo - mas não os deuses. Por isso não compreendo porque insistem em assustar e atemorizar o temível, o deus Tigre. Aliás, acordei hoje de manhã e senti-me bastante divino. Espreguicei-me e bocejei como só um deus o pode fazer. Levantei-me cedo e contemplei o meu reino a partir da encosta da montanha e pensei, por Durga !, tudo isto é meu. Então porque insistem em me irritar, se sabem do que sou capaz ? Não é melhor ser temido do que amado ? E lá vêm eles. A aldeia em peso ? Não...ficaram lá as mulheres e as crianças, e alguns velhos desdentados que tocam o sitar e cantam porque quem canta o seu mal espanta, e é precisamente por isso que para lá vou, para ensinar uma lição ao Homem, porque isto está tornar-se insustentável. Chego à aldeia e começo a lançar o terror, enquanto medito. Como se atrevem a lançar sobre mim expedições punitivas, a mim, Sua Eminência, o Imperador de Toda a Ásia, "Meu Senhor Tigre" - é como me chamam ? Como se atrevem, os destronados marajás da Índia, que desistiram da luta pela soberania e agora me caçam confortavelmente sentados num Rolls-Royce ? É preciso ter lata...eles que agora são Ingleses e mandam os filhos para Oxford, servos dos Ingleses mais Ingleses que os próprios Ingleses que no entanto os desprezam ! São peões em Grandes Jogos, lacaios dos Kim, e dos "Lords Jim" que se mancharam na ignomínia da cobardia e procuram redenção na selva, no domínio que é meu desde d´o tempo em que nós, animais, falávamos ! Ah, mas aí vêm ! Olho-os, cheio de raiva, através da cicatriz que me atravessa o rosto, e o Nobre Tigre tem que fazer uma retirada estratégica ! *** Dormi 7 dias e vagueei nove noites, até chegar a orla de uma floresta de bambu onde o silêncio era o rei. Não gostei ; só ouvia uma suave brisa passando pelos tufos de pelo que tenho nas orelhas. Aspirei o ar, farejei em todas as direcções, e só conseguia cheirar frescura e uma estranha paz. Entrei. Sob uma árvore, sentado numa pedra coberta por uma esteira de palma entretecida, vi um homem pequeno e franzino. De tão frágil, com uma garra apenas eu o podia cortar ao meio, se quisesse. E o que me confunde é que não quero. Ele está quieto. Totalmente imóvel, quase nem respira, duvido que se tenha apercebido de mim. Aproximo-me. Ele tem vestido apenas um pano branco, enrolado à volta da cintura e das pernas cruzadas, e as suas mãos repousam sobre os joelhos. Ele abre os olhos e pega numa flauta. Solto um rugido, sem grande vontade, mais por hábito do que por convicção ; e pressinto nele algo de diferente, desconhecido para mim. Para MIM, que sou divino. Como é que é possível. Sento-me. Escuto as suas palavras, que me soam ao cantar dos pássaros dos bosques ; ao som da água escorrendo pelas cascatas. Deito-me. Ele levanta-se com toda a calma do mundo, vem até mim. Estou paralisado, não sei o que se passa comigo. Permito que ele se sente no meu cachaço. Levanto-me. A partir desse momento compreendi que éramos Irmãos. E desaparecemos na floresta. Onde todos somos mortais, Deuses & Homens. O Homem-Tigre, e o Tigre-Homem.

Os Animais : PINGUIM

PINGUIM Toda a gente acha que a maneira de andar dos pinguim é muito engraçada, até se verem na contingência de andar como eles, na terra deles. Aí o caso muda de figura, para pior. O Pinguim personifica a adaptação ao gelo mais do que qualquer outro animal, do ponto de vista do Homem ; talvez por sermos aves que não voam ; andamos erectos, de costas bem erguidas, e parece que usamos uma casaca preta e coletes brancos. Como outros, outrora, que depois vi num caixão fluctuante. Imagino-os nos salões das senhoras da sociedade culta, aristocrática e da alta burguesia. Ponho-me no lugar deles, em reuniões da Royal Geographical Society, pobres e ridículos aventureiros, em busca de patronos e patrocínios : capitães do Exército sem grandes perspectivas, diletantes filhos de capitães de indústrias cavernosas dos miseráveis de 16 anos ou menos que trabalham por dia 16 horas ou mais, e filhos cadetes de marqueses, de papo cheio de coragem e bolsos cheios de nada, despedindo-se da filha do baronete no beberete após a partida de cricket, ela e ele vestidos de branco, branco de juventude e de ingenuidade e inocência, brancos de neve, brancos como o colete do Pinguim. Vimo-los chegar ao reino do Gelo e da Neve, ufanos de esperança e da glória de deixar a bandeira no Pólo Sul, numa corrida insana, bem humana, demasiado bem carregados e mal preparados, nem sequer imaginando com toda a sua ciência e inteligência aquilo que o Pinguim sabe por experiência. Olhamo-os com curiosidade uns, e indiferença outros ; isto de se ser pinguim não é fácil, pescamos sardinhas nas costas de terras a que foram dados nomes de rainhas ainda vivas para que sejam marcadas coordenadas e posições geopolíticas de prestígios victorianos de cruzadores blindados alimentados a vapor por pazadas de carvão e homens de Newcastle, dos tempos em que não havia assim tantas greves de mineiros porque se calhar não havia assim tantos direitos. Nós, os Pinguins, pescamos e quando estamos debaixo d´água escutamos os ínfimos ruídos e “cracks” da madeira a estalar lentamente pelo abraço frio do gelo, que comprime e esmaga o navio dos intrépidos exploradores, do capitão escocês de barba ruiva e cachimbo apertado entre os dentes que daqui a dois meses vão matraquear incontrolavelmente enquanto amaldiçoam a Terra do Pinguim, onde se encontram deslocados como peixes fora d´água. E eu, o Pinguim – chocando o ovo ou cuidando das nossas crias, tarefa partilhada por machos e fêmeas, nesse aspecto somos mais humanos do que os próprios Homens - abano a cabeça e antevejo a desgraça. Os poucos que irão sobreviver regressarão como farrapos humanos, entre eles o terceiro filho do marquês e o detestável despenseiro do navio, que desviava provisões ; foi descoberto, mas tudo se calou e esqueceu no inferno gelado quando ele carregou às costas o filho do marquês, naquela característica humana que maravilhou o pinguim, a de os Homens deixarem cair barreiras e se unirem na desgraça, nas dificuldades. Nada que nós, os Pinguins, não saibamos já, quando nos juntamos corpo a corpo para darmos uns aos outros calor e vida. Talvez um dia o mundo dos Homens seja melhor, quando eles forem mais parecidos com Pinguins.

Os Animais : MORCEGO

MORCEGO Imaginem um mundo ao contrário, em que em vez de haver gravidade centrífuga há antes um chão oposto ao nosso, de pernas para o ar, e as pessoas são empurradas para ele e estão de cabeça para baixo em relação a nós, de pés bem assentes nesse chão que para nós se torna o tecto. É esse o mundo do Morcego quando dorme, e ninguém pode negar que quando estamos a dormir nos encontramos num mundo diferente, alternativo. O Morcego, criatura da noite extraordinaire, compreende estas coisas melhor que ninguém. Aliás, é nos Antípodas que vivem os meus parentes Pteropus, “a raposa-voadora”, o Godzilla dos morcegos. Era este o tema da conversa em família e estória de encantar que eu, o Morcego, contava ao meu filhote lá na caverna que é a nossa residência. Toda a gente sabe que é nos sítios escuros que têm lugar as conversas mais interessantes. “Papá, e os morcegos vampiros?” perguntou o meu filhote, certamente pensando no mito que associa algo de demoníaco aos nossos primos que ingerem sangue, lá nas selvas da América do Sul. “Bem, meu rapaz”, respondi eu enquanto me envolvia na capa negra que são as nossas asas, “é tudo uma construção cultural mágico-religiosa fundamentada na crendice e na ignorância humanas, de que o sangue é a alma da carne e que ao chupares sangue além de extraíres um pouco de vida material também estás a sugar algo de algo de espiritual. Ora, se assim fosse, de cada vez que alguém dá sangue estaria a transmitir ao receptor algo de imaterial, muito seu, alguma vivência ou experiência ou sentimento único e irrepetível, e nenhum morcego no seu juízo perfeito jamais acreditaria que num ser vivo há algo mais do que a combinação e soma dos elementos químicos que o compõem. “É uma lenda antiga, universal, que apesar disso não deixou de ser alimentada com a transferência cultural, aliás transfusão, entre povos de geografias e contextos diferentes que se interpenetram e dão dentadas uns aos outros como se fossem animais. Recordo-me daquele romance de aventuras de Emilio Salgari que refere um episódio de vampirismo – animal, claro. A acção decorre nas selvas do que é agora a Venezuela (onde Salgari nunca esteve porque de facto nunca saiu de Itália) e um dos mauzões – inimigos do corsário que usava uma capa negra - é encontrado com dois furos no corpo. Não me lembro onde, acho que na cabeça, porque essa coisa de no mundo dos Humanos os vampiros morderem no pescoço é algo de um erotismo que não existe no mundo animal ; se mordem no pescoço, ou na garganta, os animais fazem-no porque é prático e cómodo, e porque lá passa a artéria carótida que leva oxigénio ao cérebro. Ao contrário dos Humanos, os Animais matam sem crueldade, porque não conhecem o Bem e o Mal, e porque o fazem segundo a lei da parcimónia de energia e força, por poupança de esforços. As estória também envolve índios antropófagos, o que é um horror e tabu para muitos mas para certas minorias étnicas não. É tudo uma questão de relativismo cultural. Foi um grande choque para os Europeus da época da narrativa, que preferiam entregar-se a tarefas muito mais sensatas como por exemplo demandas por cidades de ouro supostamente perdidas nas selva, e fontes de eterna juventude, nunca lhes ocorrendo que se as houvesse já os índios as teriam descoberto há muito. O facto simples e evidente de haver índios idosos passou-lhes completamente ao lado. Mas enfim, para eles era uma oportunidade para brilhar e regressar às suas cortes carregados de coisas que brilhavam, a fim de serem utilizadas como moeda e como ornamento das igrejas do seu Homem-Deus que por acaso até privilegiava a pobreza. E assim iam, rio acima, crivados de flechas envenenadas, carregados com canhões e balas de canhão que os atrasavam como se lhes estivessem acorrentadas aos tornozelos, e morrendo de sede e calor sob elmos e couraças que os tornavam tartarugas de aço ; e acompanhavam-nos outros homens brancos vestidos de negro cuja tarefa era pegar em homens de pele mais escura e torna-los mais brancos através da sua Fé, que até pode mover montanhas mas que não cura cegos que não querem ver, do tipo dos que não querem colocar-se na pele do Outro e ver as coisas com os seus olhos. E muitos falhavam clamorosamente, como falham os que perseguem sonhos inatingíveis. Houve de tudo, até quem mandasse construir uma ópera no meio da selva, vê lá bem a fantasia, paga com sangue de árvores e com o suor de homens, senhores e escravos numa bizarra dialética, num estranho e trágico bailado de vaidades e vãs glórias… “Papá, falar de Homens é aborrecido, e mete-me nojo…” “Tens razão, filho. Vamos mas é esvoaçar para fora da caverna em direcção à luz, e vamos petiscar uns suculentos insectos.”

POESIA XV : EMPREGO DE SONHO

EMPREGO DE SONHO Hoje acordei por distracção. Esquecendo todos os factos, Descurando todos os pactos, Entrei no dia em colisão. Acontece-me amiúde : Olvido o que é e não é, Queimo-me na máquina do café, E perco o trem da plenitude. Passando guias de desordem A clientes que não existem, Peço aos deuses que me acordem ; E volto na hora de ponta, P´ros pesadelos que persistem Na minha casa de faz-de-conta."

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Poesia XIV : "Pulsar"

PULSAR Foi na glória da clausura De um casulo doce, quente Que nós nos vimos, frente-a-frente E viajámos até à loucura. E, em gestos não calculados, Dos que não deixam qualquer traço Fomos aos confins do Espaço D´onde emergimos, cansados, Do turbilhão de estrelas, Explosivo, bruto e crú Onde, princesa, brilhavas tu Radiando entre as mais belas. Perco a minha respiração Quando te vejo, langorosa Na tua veste vaporosa, A desarmar-me o coração ; E, se na guerra e no amor É verdade que tudo é justo, Com paixão pagarei o custo Morrendo na Arena do Amor Que é ter-te. Nesta vida breve, Cheia, vazia, de Vida e de Morte Somos pois deixados à sorte Nas baladas que o Destino escreve. Deixas-me de peito aberto ? Então entra e fascina-me Eleva-me ou arruína-me... ...pois o que está infinitamente longe também pode estar infinitamente perto!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Mais um conto do ciclo "Os Animais" : "Urso"

Há duas coisas que nunca se negam a ninguém : um copo de água e o último cigarro de um condenado, nomeadamente a um urso, eu, condenado à morte por me ter passado da cabeça durante o maior espectáculo do mundo, o maior espectáculo do mundo dos escravos e dos animais que eles escravizam, o espectáculo das palminhas a bater o ritmo, da contorcionista que se perdeu de amores pelo trapezista húngaro de olhos doces e sobrancelhas arranjadas e sorriso tipo anúncio de pasta de dentes ; mas ele prefere partilhar a roulote do domador de leões, um pobre diabo cruel e viciado na angústia de acordar todas as manhãs a cheirar a gin barato e a maquilhagem cedida pelo palhaço rico da cara branca e das orelhas vermelhas indicadoras de bem-estar e de falsos fluxos de sangue resquícios do primeiro ensaio que correu mal ; eu, o urso, assistia a tudo e via tudo agora muito melhor do que quando no Alaska contemplava estalactites de gelo nos pinheiros de onde lambi pela primeira vez neve ; eu e os meus irmãos e irmãs travávamos ferozes batalhas de bolas de neve em que todos ganhavam e nos perdíamos de riso quando pregávamos sustos de morte aos coelhos, sob o olhar reprovador da coruja ; corríamos pelas montanhas fora e a liberdade tinha esse sabor desconhecido só percebido por quem nunca foi prisioneiro nem de ninguém nem de nada excepto do Amor ; beijei pela primeira vez a minha ursinha de focinho rosado à sombra de uma sequóia antiga como um faraó e jurámos amor eterno assinando na neve os nossos nomes com agulhas de pinheiro e penas de águia ; e fomos felizes até ao dia em que homens de olhos rasgados e sorrisos maus e igualmente rasgados a perseguiram e a fizeram cair nas águas rápidas e turbulentas de um rio que jamais lavará a dor da minha perda ; e a mim enfiaram-me numa gaiola mais fria do que qualquer glaciar que eu alguma vez conhecera, e onde me puseram a ferros e a fome. Aprendi a dominar a minha raiva surda reagindo bem às bastonadas num tempo de infindável espera e espera e espera...ganhei, com o tempo, a confiança e a convicção dos meus guardas prisionais encenadores de tristezas de bastidores de que era um prisioneiro exemplar e colaboracionista até surgir o momento por que esperei durante tanto tempo : na fraqueza da distracção de um assistente esmagado pelo peso de dívidas e de preocupações conjugais, abri a porta da jaula e com um rugido de triunfo decepei o mestre-de-cerimónias, a incredulidade ainda estampada no seu rosto seboso ; esventrei o domador, das virilhas até à garganta num só golpe, ébrio de glória e do poder de matar em retribuição divina do deus dos ursos ; galguei as bancadas semeando o terror no Circo de Natal de alegria e de paz e da reconciliação de pais e filhas desavindos de divórcios magoados e mal negociados, e de festas de Natal de empresas de "mergers and acquisitions" que se dedicam a mandar para o desemprego quinhentas pessoas de cada vez sem qualquer tipo de escrúpulo ; esmaguei de uma patada a cabeça do ilusionista, nenhum truque escapista o poderia salvar da morte desta vez bem real ; soltei ao máximo as garras para estripar a sua assistente quando cheirei a sua gravidez ainda não visível, parei...e esse momento de piedade e compaixão valeu-me um dardo tranquilizante entre as espáduas e quebrei. E assim eu, um urso, me vejo no corredor da morte por ter sido nada mais nada menos que humano, por haver matado e amado e sentido misericórdia. O que qualquer homem faz, em qualquer dia da sua vida, e o motor da História do Homem. Morro, sim...mas morro por amor e assim venço a Morte.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Carta de Laura - 2

Meu querido, Boa tarde. Espero que estejas bem, de saúde e espírito - que também tem a sua saúde, a que nós devemos encontrar, estimar e manter, mesmo que nem sempre isso tenha sido feito... Oh meu amor...quero agradecer-te do fundo do coração a nossa noite de sábado...foi verdadeiramente uma febre de sábado à noite ! Há muito tempo que não nos sentíamos assim, não foi ? Uma entrega tão completa, um enlevo no nosso amor, um abandono total...sentimos quão forte é o nosso amor, e mais, amámos a nossa beleza, amámos o facto de nos amarmos ! Foi simplesmente maravilhoso e queremos repetir, my precious ! Adorei quando dançamos loucamente, à luz fraca daquele candeeiro...e depois fomos para a cama onde nos entregámos à nossa paixão...com volúpia e muita, muita acção ! Fomos bem fundo, explorámos novas possibilidades, realizámos a caminhada, e depois no final passámos da imagem física para o Sonho e...de mão dada fomos mais além ! Obrigado, meu amor, da mesma que sei que me agradeces ! Beijos, tantos, da tua Laura

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Poesia XIII : Mulher-Árvore

Ei-los alquebrados, os seus dedos Ramificações, quais alianças Manifestas, várias esperanças E no tronco outros tantos segredos * Tua seiva corre-me p´la veia Cada ombro é uma ramada ; Deixa que te faça desfolhada Da fronda quando a manhã clareia. * Mulher-Árvore, de fruto e flor Paraíso de sombra e frescura, Tornas verde minh´alma impura Rejuvenesces-me p´lo amor. * Deito-me nas tuas raízes E em almofadas de caruma, Melhores que a mais fina espuma, Sou o mais feliz dos infelizes.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Reflexões, 8 - Sobre a vivência da Fé II

Não quero deixar de registar neste diário online duas experiências que me aconteceram, uma delas ainda na actualidade, e com alguma frequência. - A primeira teve lugar na Igreja da Luz (?), no Largo da Luz, em Lisboa. Por cima e no ponto mais elevado sobre o altar, já no ponto em que a parede toca o tecto, existe uma pintura de uma pomba ( o Espírito Santo ? )descendo sobre a cabeça de uma mulher (Nossa Senhora ? ). Não sei, desconheço, sou muito ignorante nestas matérias de Fé e ainda mais de História da Arte. Mas sei o que vi : em oração, esse quadro/pintura, ou antes a imagem, destacou-se da parede e pareceu-me avançar na minha direcção. - A segunda ocorreu na mesma igreja, e já me aconteceu noutra, a de Benfica : o padre lê o Evangelho e profere a homilia, e enquanto escuto e olho para ele tudo à minha volta fica como que enevoado e difuso ; só o padre ali se encontra, e ele está rodeado de uma aura de luz que ofusca tudo o resto. Não vejo mais nada nem mais ninguém. Não me parece que Deus me agraciasse com mais nada do que o Seu Amor, e mesmo assim já seria muito!, e nem sei se devo apequenar-me tanto, por respeito a Nosso Senhor ; sei apenas que pouco ou nada sei em matéria de Fé e desejo apenas paz para mim e para o mundo, em nome de Jesus Cristo Nosso Salvador. Sou como uma criança, sou O Menino Doente e sempre serei, e nada mais desejo, no fundo, como qualquer menino, do que amar e ser amado e ser abraçado pelo Pai.

Carta para Laura e Raimundo - 1

Olá meus queridos E Feliz 2014 ! E porque é que me sinto um hipócrita quando digo isto ? Porque não creio, claro, e porque estou magoado, muito magoado comigo mesmo, como sabeis. Não há nenhum dia que passe que eu não deseje uma mudança no meu estado de espírito, já que não posso mudar o passado então ao menos que mude o futuro, se Deus me conceder essa graça. E, por acaso ou não, ou talvez com algum esforço mas em dúvida com o amor e com a graça de Deus, lá me vou sentindo melhor, mais em paz ; não ando triste nem no permanente holocausto da alma que me faz repudiar tudo e me afunda em abismos de desprazer de viver ; ultimamente tenho, por outro lado, sentido uma grande paz e serenidade (fora alguns momentos de impaciência que talvez até sejam justificados...).Peço perdão, em oração e fora dela ; assisto à Missa e participo na Santa Eucaristia diariamente, e sinto uma paz e um amor enormes. Apetece-me abraçar toda a gente, do mais velho ao mais novo, os doentes, os pobres, os que não sabem defender-se a si próprios ; ah...se eu pudesse (e quisesse) e se tivesse mais fé, quem sabe se não estaria por aí algures uma forma qualquer de consagração religiosa ! É talvez o ponto alto do meu dia. Há outros momentos em que me sinto muito bem, por exemplo quando leio um livro que me esteja a apaixonar, ou quando me deito na cama que tenho a sorte de me darem para me deitar ; desejo e peço para que toda a gente se sentisse em paz, e tivesse uma cama. As coisas mais simples são e serão sempre as melhores, mais que não seja porque são as que tomamos por garantidas, e que acabamos por valorizar com humildade quando perdemos algo na vida que constituía o tapete que tínhamos debaixo dos pés. Tenho que me esforçar mais. Peço a Deus firmeza e constância ; fé e discernimento. Se tiver Fé, nada mais me faltará. Confio totalmente em Deus e no Seu Filho, que me salvaram a vida e me resgataram do que aparentava ser a eterna damnação a que eu mesmo certamente me condenaria ; se eu sofro com o que sou e com quem sou agora, imagine-se em que espécie de Inferno eu não estaria se agora me encontrasse numa cadeira de rodas, ou pior. Seja louvado Deus Nosso Senhor, e o Seu Filho Jesus Cristo Nosso Salvador, o Príncipe da Paz ! Meus caros, tenham esperança. Não creio que valha a pena desesperar por razões e motivos e factores que estejam fora do nosso alcance. Quem tem esperança tem todo o tempo do mundo. Não ambicionemos mais do que aquilo que desejamos, e esta é particularmente para ti, Raimundo ; terás que moderar as tuas ambições de social climber, se é que as tens, às vezes não te conheço ; e tu, minha querida Laura, sabes o que tens a fazer...estou certo de que juntos iremos conseguir, porque somos a Companhia Improvável e somos - literalmente - inseparáveis ! (cont.)

Em actualização : Leituras & Sites de Referência

- Sobre Maria Valtorta e "O Poema do Homem-Deus" http://valtorta.org/the_poem__freeonlinereadingoffer.asp http://en.wikipedia.org/wiki/Poem_of_the_Man_God http://www.uk.mariavaltorta.com/ - Sobre a ordem de São Bruno (Chartusian) http://www.statcrux.co.uk/ocart/index.htm - Jesuítas em Portugal http://www.jesuitas.pt/Jesu%C3%ADtas-em-Portugal-1.aspx - Espiritualidade Inaciana http://en.wikipedia.org/wiki/Ignatian_spirituality http://www.ignatianspirituality.com/making-good-decisions/an-approach-to-good-choices/an-ignatian-framework-for-making-a-decision/