Uma (re)colecção de textos de formato e extensão diversos - poesia, crónica, meditações avulsas, anotações diversas, flash fiction, excerptos de contos escritos e por escrever, memórias e auxiliares de memória, orações, manifestos de ciências imaginárias como por exemplo a Monte Cristologia, e outros exemplos de sabedoria e disparate.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
Os Animais : LAGARTO
O Sol vence sempre porque é um tirano, é um dador de vida que mata se não souberes viver com ele, e é o Sol que tudo vê. Um déspota, o Panopticon, o Sol que tudo vê é a divinização da coscuvilhice. O Sol, assim, tortura-nos, e a imobilidade torna-se a única fuga possível. Foges dele e refugias-te em tocas, verdadeiros úteros de pedra, no seio da Mãe Terra. Despertas de sonos também de pedra, com a boca seca e pastosa dos milénios extremos que são os curandeiros da consciência cheia de linguagem simbólica e misteriosa dos Tempos dos Sonhos, excêntricos e vagarosos como o crescimento de uma cordilheira, num Mundo simultaneamente pessoal e universal, arquetípico, que cada Homem tem a veleidade de explorar quando dorme. E da mesma maneira, cada Homem, enquanto se forma no útero da sua mãe, nm certo momento da reconstituição da história da vida animal, toma a forma de um pequeno lagarto.
São as palavras que me ocorrem escrever na conferência que que mais tarde vou proferir perante uma audiência de jovens poetas hippies, alimentados com generosas doses de Castañeda, Blake e Baudelaire quando eles vierem ao deserto em busca da sua alma, e de alguma reconexão com o mundo natural e antigo, que eu, o Lagarto, profetizo depois de as interpretar de dentro de um buraco formado por pedras calcinadas pelo Sol, que as faz parecer um pão seco e gretado ; as ranhuras e as fissuras nas rochas para mim são petróglifos, letras de um livro sagrado escrito na língua dos deuses que vieram à Terra mas depois foram-se embora, deixando-nos abandonados à nossa sorte e na nossa condição de criaturas imperfeitas, com que nos mortificamos e picamos como cactos que lançam a sua sombra no crepúsculo de deuses, homens, e animais. Vêem além aquele esqueleto de vaca, branco, limpo e seco ? Noutras paragens poderia talvez ainda estar viva, e ser uma vaca sagrada ; mas aqui se calhar tentou atravessar este deserto, o meu deserto ; nunca precisei de o atravessar porque sempre aqui estive, é a minha morada ancestral, e dos meus antepassados muitíssimo anteriores a isso, lagartos enormes cujos esqueletos, mais tarde descobertos pelo Ser Bípede, deram origem a lendas de dragões.
Todas estas coisas e muitas outras eles aprendem e esquecem, depois de uma festa em que cantamos e dançamos, Homens e Lagartos, à volta da fogueira, sob o Céu sarapintado como um lagarto pintado, quem te pintou...ou como uma tela negra em que um deus-criança limpou espátulas e pincéis.
Imemória. Tempo. Silêncio. São os segredos do deserto, onde não há truques - só a verdade. A verdade do Lagarto, que é miragem da origem.
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