Uma (re)colecção de textos de formato e extensão diversos - poesia, crónica, meditações avulsas, anotações diversas, flash fiction, excerptos de contos escritos e por escrever, memórias e auxiliares de memória, orações, manifestos de ciências imaginárias como por exemplo a Monte Cristologia, e outros exemplos de sabedoria e disparate.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
Os Animais : TIGRE
"ASSASSINO ! ASSASSINO !",
sussuram-me nos ouvidos as vozes dos decapitados, cujas cabeças uso para jogar cricket às Sextas-feiras à tarde. Vejo-os, ou julgo que vejo, à noite, na selva.
"TIGRE ! TIGRE !",
ecoam vozes desta vez bem reais, de pessoas bem reais, que fazem soar tambores à noite. O que me enfurece e enlouquece mesmo são as trombetas. E as flautas, como se fossem para um baile, para uma festa. São patéticos. Como se eu não sentisse a milhas o seu cheiro a açafrão e cardamomo...Felizmente, a luz do luar passando pela densa folhagem lança sombras que se confundem com as minhas listras e passo despercebido ; estou perto e estou longe ; agora vêem-me, agora não. As lendas nascem na noite, na água escura do rio, quando dormem os Homens, e dorme o mundo - mas não os deuses. Por isso não compreendo porque insistem em assustar e atemorizar o temível, o deus Tigre.
Aliás, acordei hoje de manhã e senti-me bastante divino. Espreguicei-me e bocejei como só um deus o pode fazer. Levantei-me cedo e contemplei o meu reino a partir da encosta da montanha e pensei, por Durga !, tudo isto é meu. Então porque insistem em me irritar, se sabem do que sou capaz ? Não é melhor ser temido do que amado ?
E lá vêm eles. A aldeia em peso ? Não...ficaram lá as mulheres e as crianças, e alguns velhos desdentados que tocam o sitar e cantam porque quem canta o seu mal espanta, e é precisamente por isso que para lá vou, para ensinar uma lição ao Homem, porque isto está tornar-se insustentável.
Chego à aldeia e começo a lançar o terror, enquanto medito.
Como se atrevem a lançar sobre mim expedições punitivas, a mim, Sua Eminência, o Imperador de Toda a Ásia, "Meu Senhor Tigre" - é como me chamam ? Como se atrevem, os destronados marajás da Índia, que desistiram da luta pela soberania e agora me caçam confortavelmente sentados num Rolls-Royce ? É preciso ter lata...eles que agora são Ingleses e mandam os filhos para Oxford, servos dos Ingleses mais Ingleses que os próprios Ingleses que no entanto os desprezam ! São peões em Grandes Jogos, lacaios dos Kim, e dos "Lords Jim" que se mancharam na ignomínia da cobardia e procuram redenção na selva, no domínio que é meu desde d´o tempo em que nós, animais, falávamos !
Ah, mas aí vêm ! Olho-os, cheio de raiva, através da cicatriz que me atravessa o rosto, e o Nobre Tigre tem que fazer uma retirada estratégica !
***
Dormi 7 dias e vagueei nove noites, até chegar a orla de uma floresta de bambu onde o silêncio era o rei. Não gostei ; só ouvia uma suave brisa passando pelos tufos de pelo que tenho nas orelhas. Aspirei o ar, farejei em todas as direcções, e só conseguia cheirar frescura e uma estranha paz.
Entrei.
Sob uma árvore, sentado numa pedra coberta por uma esteira de palma entretecida, vi um homem pequeno e franzino. De tão frágil, com uma garra apenas eu o podia cortar ao meio, se quisesse. E o que me confunde é que não quero.
Ele está quieto. Totalmente imóvel, quase nem respira, duvido que se tenha apercebido de mim.
Aproximo-me.
Ele tem vestido apenas um pano branco, enrolado à volta da cintura e das pernas cruzadas, e as suas mãos repousam sobre os joelhos. Ele abre os olhos e pega numa flauta. Solto um rugido, sem grande vontade, mais por hábito do que por convicção ; e pressinto nele algo de diferente, desconhecido para mim. Para MIM, que sou divino. Como é que é possível.
Sento-me.
Escuto as suas palavras, que me soam ao cantar dos pássaros dos bosques ; ao som da água escorrendo pelas cascatas.
Deito-me.
Ele levanta-se com toda a calma do mundo, vem até mim. Estou paralisado, não sei o que se passa comigo. Permito que ele se sente no meu cachaço.
Levanto-me.
A partir desse momento compreendi que éramos Irmãos. E desaparecemos na floresta. Onde todos somos mortais, Deuses & Homens. O Homem-Tigre, e o Tigre-Homem.
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