quarta-feira, 11 de junho de 2014

Os Animais : MORCEGO

MORCEGO Imaginem um mundo ao contrário, em que em vez de haver gravidade centrífuga há antes um chão oposto ao nosso, de pernas para o ar, e as pessoas são empurradas para ele e estão de cabeça para baixo em relação a nós, de pés bem assentes nesse chão que para nós se torna o tecto. É esse o mundo do Morcego quando dorme, e ninguém pode negar que quando estamos a dormir nos encontramos num mundo diferente, alternativo. O Morcego, criatura da noite extraordinaire, compreende estas coisas melhor que ninguém. Aliás, é nos Antípodas que vivem os meus parentes Pteropus, “a raposa-voadora”, o Godzilla dos morcegos. Era este o tema da conversa em família e estória de encantar que eu, o Morcego, contava ao meu filhote lá na caverna que é a nossa residência. Toda a gente sabe que é nos sítios escuros que têm lugar as conversas mais interessantes. “Papá, e os morcegos vampiros?” perguntou o meu filhote, certamente pensando no mito que associa algo de demoníaco aos nossos primos que ingerem sangue, lá nas selvas da América do Sul. “Bem, meu rapaz”, respondi eu enquanto me envolvia na capa negra que são as nossas asas, “é tudo uma construção cultural mágico-religiosa fundamentada na crendice e na ignorância humanas, de que o sangue é a alma da carne e que ao chupares sangue além de extraíres um pouco de vida material também estás a sugar algo de algo de espiritual. Ora, se assim fosse, de cada vez que alguém dá sangue estaria a transmitir ao receptor algo de imaterial, muito seu, alguma vivência ou experiência ou sentimento único e irrepetível, e nenhum morcego no seu juízo perfeito jamais acreditaria que num ser vivo há algo mais do que a combinação e soma dos elementos químicos que o compõem. “É uma lenda antiga, universal, que apesar disso não deixou de ser alimentada com a transferência cultural, aliás transfusão, entre povos de geografias e contextos diferentes que se interpenetram e dão dentadas uns aos outros como se fossem animais. Recordo-me daquele romance de aventuras de Emilio Salgari que refere um episódio de vampirismo – animal, claro. A acção decorre nas selvas do que é agora a Venezuela (onde Salgari nunca esteve porque de facto nunca saiu de Itália) e um dos mauzões – inimigos do corsário que usava uma capa negra - é encontrado com dois furos no corpo. Não me lembro onde, acho que na cabeça, porque essa coisa de no mundo dos Humanos os vampiros morderem no pescoço é algo de um erotismo que não existe no mundo animal ; se mordem no pescoço, ou na garganta, os animais fazem-no porque é prático e cómodo, e porque lá passa a artéria carótida que leva oxigénio ao cérebro. Ao contrário dos Humanos, os Animais matam sem crueldade, porque não conhecem o Bem e o Mal, e porque o fazem segundo a lei da parcimónia de energia e força, por poupança de esforços. As estória também envolve índios antropófagos, o que é um horror e tabu para muitos mas para certas minorias étnicas não. É tudo uma questão de relativismo cultural. Foi um grande choque para os Europeus da época da narrativa, que preferiam entregar-se a tarefas muito mais sensatas como por exemplo demandas por cidades de ouro supostamente perdidas nas selva, e fontes de eterna juventude, nunca lhes ocorrendo que se as houvesse já os índios as teriam descoberto há muito. O facto simples e evidente de haver índios idosos passou-lhes completamente ao lado. Mas enfim, para eles era uma oportunidade para brilhar e regressar às suas cortes carregados de coisas que brilhavam, a fim de serem utilizadas como moeda e como ornamento das igrejas do seu Homem-Deus que por acaso até privilegiava a pobreza. E assim iam, rio acima, crivados de flechas envenenadas, carregados com canhões e balas de canhão que os atrasavam como se lhes estivessem acorrentadas aos tornozelos, e morrendo de sede e calor sob elmos e couraças que os tornavam tartarugas de aço ; e acompanhavam-nos outros homens brancos vestidos de negro cuja tarefa era pegar em homens de pele mais escura e torna-los mais brancos através da sua Fé, que até pode mover montanhas mas que não cura cegos que não querem ver, do tipo dos que não querem colocar-se na pele do Outro e ver as coisas com os seus olhos. E muitos falhavam clamorosamente, como falham os que perseguem sonhos inatingíveis. Houve de tudo, até quem mandasse construir uma ópera no meio da selva, vê lá bem a fantasia, paga com sangue de árvores e com o suor de homens, senhores e escravos numa bizarra dialética, num estranho e trágico bailado de vaidades e vãs glórias… “Papá, falar de Homens é aborrecido, e mete-me nojo…” “Tens razão, filho. Vamos mas é esvoaçar para fora da caverna em direcção à luz, e vamos petiscar uns suculentos insectos.”

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