quarta-feira, 25 de junho de 2014

Micro ficção : CIDADE CADASTRADA

CIDADE CADASTRADA Naquela cidade, a sociedade e a vida como um todo eram dominadas por estatísticas e a maior aspiração de qualquer cidadão era ser demógrafo. O governo era composto por demógrafos, verdadeiros engenheiros sociais e mestres do universo, que compunham e desenhavam o corpo social e às vezes o individual. A esperança média de vida era de 78.7 anos, pelo que os cidadãos, ao completarem 78 anos, teriam que ter a simpatia de viver mais 7 meses e depois retirarem-se do palco do mundo, e os agregados familiares tinham uma taxa de fecundidade média de 2 filhos e meio por casal, o que implicava que, no desporto escolar, houvesse um justo equilíbrio de laterais direitos e laterais esquerdos em campo. Também do que dizia respeito à taxa de nupcialidade, a média era de 2.5 casamentos por cada 1000 habitantes, o que implicava que para cada par homem/mulher houvesse durante a vida dois casamentos (mais ou menos bem sucedidos, pelo menos o segundo presumia-se que era porque não havia segundo sem o primeiro ter falhado) e uma relação aberta, em que as pessoas estavam casadas e não estavam. Meio casados, os homens e mulheres sentiam-se mais à vontade para se insultar e agredir a 50%. Esta abertura de espírito e atitude proporcionava uma agradável válvula de escape para outros males sociais, como a densidade populacional. De um total de 115 habitantes por km2, 2.875 eram os meios filhos dos casais, que aliás, por comodidade para os seus meios-rebentos, viviam em ruas onde só se virava para a esquerda ou para a direita, conforme o posicionamento dos olhos da mocidade. E não por acaso, com esta redundância, conceitos como esquerda e direita políticas eram desconhecidos. O que governava a cidade eram os números, e a média. Não por acaso, o nome favorito para menina era Mediana e para rapaz era Rácio. Outra consequência menos conveniente era a pirâmide etária. Nunca se conseguia agradar a ninguém, o que causava enormes disputas sociais. Velhos a carregar jovens aos ombros aumentava a taxa de médicos especializados em Gerontologia ; e quando ciclicamente se dava o fenómeno inverso, havia revoluções de jovens que se sentiam sobrecarregados com o peso dos idosos, o que era mau para o desenvolvimento saudável das colunas da mocidade. isto também tinha implicações graves na Taxa de Criminalidade : jovens insatisfeitos buscam soluções fáceis, como assaltar alguém 7.8 vezes por ano. Assim, cada munícipe ao sair de casa podia esperar ser roubado 1,538 vezes ao longo do ano, preparando-se para isso 3 vezes por semana. Como a média era de 2.5 armas por habitante, os 115 habitantes por km2 tinham que partilhar as armas, o que significava que andavam em grupos de 47 pessoas atrás de uma arma. E como os jovens meliantes podiam muito bem fazer parte dos 0.5 meios-filhos de casais, além de poderem vir a assaltar ( ou meio assaltar ) os próprios pais, podiam não ter necessária destreza ( ou esquerdeza ou imperícia ) no manejo das 2.5 armas disponíveis. Havendo 4.5 polícias por cada 1000 habitantes, o que resolveria o problema se fossem colocados frente-a-frente meios polícias (que só recebiam meios subornos), que aliás só precisavam de patrulhar a cidade 3 vezes por semana. A cidade, no fundo era um sítio que para se viver tinha a segurança dos números. Uma coisa que não se sabia era exactamente quantos demógrafos-políticos e peritos em cálculo havia na cidade. Assim não foi possível a população saber que a probabilidade de um asteróide atingir a Terra era de 1 em 635. E mais por desastre social do que por catástrofe natural, um dia a cidade e a civilização colapsaram. Havia força nos números e nem toda a gente conhecia o seu poder.

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