Uma (re)colecção de textos de formato e extensão diversos - poesia, crónica, meditações avulsas, anotações diversas, flash fiction, excerptos de contos escritos e por escrever, memórias e auxiliares de memória, orações, manifestos de ciências imaginárias como por exemplo a Monte Cristologia, e outros exemplos de sabedoria e disparate.
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Micro ficção : DA GESTÃO DOS ESPAÇOS EM LOCAIS CONFINADOS
Descobri que era fininho como uma adolescente anoréctica quando me apercebi que todas as pessoas gordas que entram no autocarro escolhem invariavelmente sentar-se ao meu lado. Ou isso ou elas têm a visão tipo espelho da Feira Popular que faz as pessoas parecerem mais magras. Seja como for, descobri que as realidades da vida às vezes são apreendidas como a notícia do jornal que está no chão e é soprado pelo vento : só vês uma parte delas, e ainda assim mal, por isso é-te permitido presumir, especular. Como quando na missa, a igreja estava cheia ( e aquela moça do coro da igreja que, cheia de fé, se me abeirou com uma folha de papel com os hinos nela escritos, para me convidar a cantar. A consequência directa disso foi a minha recusa ; eu, que sou um católico fervoroso, por puro amor e compaixão com a Humanidade pensei que era melhor recusar, pois já há pessoas suficientes a abandonar a Igreja de Roma. Além disso não queria dar às pessoas razão para se tornarem mártires, não me compete a mim influir em matérias de fé, ser a causa de as levar a deixar a família e a casa e o emprego a fim de dedicar as suas vidas à oração pelo mundo, tão cruelmente flagelado pela minha voz. )
E pronto, mesmo assim disposto a enfrentar o mundo e a Humanidade, lá saí da igreja e entrei no autocarro, verdadeiro campo de batalha onde as pessoas se degladiam com os rabos e com as barrigas em lugar de espadas, onde se decide o futuro imediato da gestão do espaço em locais confinados. Há sempre um bébé irritante a chorar, ele sabe que tu vais lá entrar e começa logo a soltar berros. Também há uma pessoa a tossir de uma forma que te faz lembrar um pterodáctilo fanhoso.
Depois tive que entrar num elevador que já tinha dentro, para meu azar, quatro pessoas. O que fazem quatro pessoas num elevador ? Ocupam os cantos e conseguem dar-se ao luxo de conseguir olhar para as paredes, enquanto a quinta pessoa é forçada a ficar no meio, o pior espaço vazio possível. Mas o que é isto ? Estamos num filme de submarinos ou quê ? Pensas logo que há, evidentemente, uma conspiração contra ti. A do espaço. E a dos corpos, chegas ao ponto de desejar que ninguém tenha um corpo. Que sejamos todos espíritos angelicais. Ou que pelo menos ninguém tenha um corpo animado e quente, a suar de esforços e esperanças não conseguidas.E depois não me venham com tretas budistas de encontrarmos o nosso espaço interior. Há uma malícia nisto - e chama-se "os outros". Foi por isso que um dia decidi que tinha que os matar a todos.
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