terça-feira, 24 de junho de 2014

Micro Ficção : CIDADE SANTA

Como tanta coisa na vida, tudo começou com uma brincadeira um bocado parva, mas inocente. Na pizzaria do centro comercial, Magda e Jaime haviam combinado dizer a quem os atendesse que Jaime pertencia a uma minoria étnico-religiosa que o impedia de comer ananás, por isso não iriam querer essa fruta na pizza. Elaboraram um pouco mas não muito porque a funcionária estava a trabalhar, mas o suficiente para dizer que no séc. XIX um índio do Paraguai tinha tido uma visão do Grande Espírito que decidira comunicar com ele através de um ananás, por isso não podia comer o espírito. A jovem funcionária, profundamente impressionada, não tardou a falar disto a colegas e amigos e o mito não demorou a alastrar como um rastilho, incendiando as redes sociais. Foram formados grupos de apoio ao Ananás. Jovens de esquerda bem educada puseram máscaras de Anonymous e lenços palestinianos, fundaram a Frente de Libertação do Ananás e foram protestar para hipermercados contra o opressor que vende, cortado às rodelas, o espírito e o põe em latas ainda por cima com a suprema humilhação de o pôr em conserva - representando a victoria da ciência e da indústria sobre a Natureza. Jaime acordou um dia e viu repórteres de TV em frente à sua casa, querendo entrevistar o sucessor do Profeta. Jaime teve a infelicidade de dizer que era tudo uma farsa, criada por inveja pelo Irmão Gémeo Mau do Ananás, o Abacaxi, que se considerava o Verdadeiro Grande Espírito. Nessa altura a sociedade já estava insanavelmente dividida entre puristas e intérpretes da verdade, e grandes inquisidores de ambas as partes decidiram questionar Jaime. O que ele dissesse seria verdadeiro, e Jaime seria coroado como um ananás - ou abacaxi. Magda estava já de cabeça perdida e implorava a Jaime que pusesse fim ao embuste, mas Jaime sentiu-se estranhamente poderoso. A mentira tornava-se verdade, lenta e insidiosamente, no seu espírito. O poder das massas e dos media havia tomado o freio nos dentes, e, não resistindo a tamanha força, ele sucumbiu. Quando os aspirantes a sacerdotes (que entretanto viam a face do Espírito do Ananás em todo o lado e reconheciam palavras proféticas em qualquer papel escrito que lhes aparecesse à frente) lhe solicitaram subservientemente uma audiência, ele deixou-se dominar pela vertigem do poder. Levaram a herética Magda, que chorava como uma madalena arrependida, para um campo fora da cidade, onde lhe arremessaram ananases até ela cair - ela implorando misericórdia e jurando eterna fidelidade ao divino fruto. Regressou submissa a casa onde se arrojou aos pés de Jaime, agora sentado num trono adornado de escamas verdes. E o mundo nunca mais foi o mesmo. Foi encontrada uma nova galáxia, devidamente nomeada Ananasia Maxima. Cientistas oficiais do regime esforçaram-se por dar vida inteligente ao citrino de origem sul-americana. E floresceu toda uma indústria de parafernália e objectos de culto dedicados ao Ananás, e viagens à terra prometida e aos locais visitados pelo Grande Espírito. Décadas e guerras santas passadas, a funcionária da antiga pizzaria morreu e no seu testamento foi encontrado um documento que relatava o sucedido anos antes. Um grupo marginal de cientistas, correndo risco de vida, acabou por repôr a verdade. A dúvida, tal como a crença cega, havia transformado a visão da populaça ; e lenta e dolorosamente o mundo voltou ao que havia sido. Foram instituídas comissões de paz e reconciliação com o alto patrocínio da ONU ; o funcionalismo e a classe clerical do Culto do Ananás foi reeducada, e os eixos da vida e da normalidade foram realinhados. Jaime suicidou-se com uma overdose de compota de ananás, e Magda escreveu a sua autobiografia que se tornou um bestseller e depois um filme realizado por M. Night Shyamalan.

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