quarta-feira, 11 de junho de 2014

Os Animais : MACACO

Pula, guincha. Cambalhota. Pula, guincha. Cambalhota. É tudo o que se exige do pobre macaco : que faça macacadas, e que as faça de maneira convincente. Como eu as faço na rua, junto ao meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, com a sua barba e casaca malcheirosa. Põe-me uma fatiota e que me faz parecer um mandarete de hotel, com um chapeuzinho num ângulo atrevido, preso por baixo do queixo, e não me queixo, apesar de o Macaco ser o mais humilhado de todos os animais domesticados não domésticos. É suposto o macaco ser sempre engraçado, mas às vezes estou farto, tão farto de ser o macaco que esperam que seja. O Homem humilha o Macaco como se visse nele, se revisse, como uma versão pobre de espírito, antediluviana, primordial. Como se o Macaco - de tal maneira parecido com o Homem, ou ao contrário porque o Homem deriva do Macaco - merecesse ser alvo do alívio humano ; de ser uma espécie de saco de pancada, como se fosse dito ao Macaco que a culpa é sua por não ter evoluído. O macaco, a punchline do Michael Jackson. Ah, mas nós evoluímos. Fomos ao Espaço antes de qualquer Homem. O Homem é um cobarde, inteligente, mas cobarde, capaz de fazer tudo do macaco, mas principalmente a sua contraparte cómica, como fazem as pessoas que riem quando vêem alguém cair. Espero que um dia emerja das selvas um King Kong a sério, um Genghis Khan para os Macacos, que nos eleve para lá da Queda do Homem. Penso nisto quando pulo, guincho e faço cambalhotas. Ao menos a minha mente está livre para pensar, enquanto me dedico a tarefas menos edificantes.Penso no Macaco como retroversão do Homem pelo Homem, como no filme "O Planeta dos Macacos". O Macaco é sinal de mau-estar, de uma espécie de malaise, da decadência do Homem numa História (naturalmente) alternativa. Como se o Macaco fosse uma alternativa ao Homem, mais, mas não melhor, do que a coisa a sério - o Homem. O arrogante e insolente Homem. O Homem que, quando quer ofender-se, chama Macaco a outros Homens - não só ofendendo o Homem, mas o Macaco também.Coisa a sério ? Não vejo exemplo disso no meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, que até podia ser cego mas vê muito bem. Ele cumpre uma espécie de horário junto à porta da igreja, onde se disputam amargamente os lugares piedosos entre mendigos e pedintes e artistas com pulgas amestradas. Depois de picar o ponto, o Tocador Cego de Realejo dá a volta ao quarteirão, tira do bolso uma chave e entra numa carrinha onde se despe e troca de roupa. Tira a barba postiça e a dentadura falsa, e torna-se, ou volta a ser, o seu verdadeiro eu : uma fraude. Um tipo que vai à galerias de arte, que não perde uma prova de vinhos, e gosta do seu bom charuto. Volta para casa para a sua mulher bonita, que lhe pergunta como foi o dia no escritório, e ele mente e engana com quantos belos dentes tem, diz que foi um dia cheio de reuniões. Beija os filhos e ajuda-os nos deveres antes mesmo que eles tirem o uniforme do colégio caro que frequentam. Faz-lhes festas com as suas mãos que enganam ricos, pobres, a família, todos, o Mundo inteiro. As mãos enganam, tudo o que tem mãos tem inteligência. E é isto que faz dele um Homem ?E, repito, as mãos enganam. Como eu os enganei a todos. De tantas vezes ver o meu dono a retirar a tampa da válvula para pôr ar nos pneus, um dia decidi tirar-lha. Entrámos na carrinha, eu ao seu lado. Arrancámos. E algum tempo depois, antes da carrinha se despistar connosco lá dentro, eu saltei para o tablier e guinchei - ri, ri, ri - como um louco. Antes do fim, antes de batermos frontal - e mortalmente - ele olhou-me nos olhos e viu a minha inteligência, e a válvula na minha mão. Porque tudo o que tem mãos engana, e afinal de contas eu sou um macaco de imitação.

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