sexta-feira, 20 de junho de 2014

Micro ficção : A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula

A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula Há muito, muito tempo, num país muito distante, vivia um homem muito tímido, a personificação do embaraço. Tudo o incomodava : o sol, a chuva, taxistas que nunca param nas passadeiras, pessoas que aderem alegre e inquestionavelmente ao acordo ortográfico, pessoas que cortam as unhas em público, mães que compõem as sobrancelhas dos filhos com um dedo humedecido de saliva, não haver todos os tipos de lápis nas lojas dos chineses, entre muitas e variadíssimas coisas. Ele engolia com filosófica vergonha todas estas afrontas sem nunca deixar de sentir pena pelas pessoas e pelas situações que reduzem a Humanidade a um estado de pré-felicidade da sofisticação. Para ele, pensar e saber circunstâncias o embaraçavam ao ponto da impotência surda e do desagrado e do impossível desagravo fazia-o lamentar o seu estado e condição com todas as fibras do seu ser. Assim um dia, decidido a nunca mais ver ninguém pela frente, resolveu estar sempre por trás das pessoas. Impedido de alterar o estado das coisas apercebendo-se que a Humanidade lhe voltava as costas com desprezo, propôs-se executar ele mesmo essa realidade, e pôs-se definitivamente nas costas das pessoas, já que pela frente a sua timidez e vergonha não o deixavam fazer. E assim, essa cidade ficou conhecida, célebre mesmo, como a Cidade da Vergonha, em que as pessoas escutavam uma voz recriminatória como quem lê o jornal por cima dos seus ombros, e vinda da parte de trás das suas cabeças, verdadeiro calduço castigador na nuca ; incapaz pelo pudor de dizer as coisas frontalmente, a voz do homem invisível comunicava aos cidadãos, por uma espécie de porta das traseiras, tudo aquilo que queria ter dito mas nunca fora capaz. As pessoas pensaram começar a enlouquecer, ao princípio – não conseguiam abafar a voz da sua suposta consciência pessoal e cívica, e o homem tímido começou a ler nos jornais (do fim para a página 1) e a tomar consciência do seu poder. Às vezes gritava, outras vezes sussurrava, e outras ainda mantendo-se em silêncio – descobrindo com secreto deleite que conseguia prever e corrigir, mesmo calado, crimes de ridículo e patetice. De modo que, lentamente, o povo foi perdendo o sentido do ridículo, mas também deixou de cantar e compor quadras para manjericos ; os cantores pimba, por falta de público, emigraram para França ; os jogadores de futebol começaram a comprar carros mais baratos e discretos e a fazer menos tatuagens ; morreram de inactividade e desgosto velhinhos de bairro porque a coscuvilhice passou de condenável a anátema, e o povo deixou de ver telenovelas mexicanas. O homem invisível tinha criado um monstro de apatia, sem cor, nem lustro, nem lantejoulas, e sem a alegria que o espírito crítico e do discernimento livre pode conferir. Sem coisas ridículas e palermas, sem o mau gosto, também se havia perdido toda a maravilha que é a educação de gostos, da descoberta da qualidade, dos momentos “Eureka!”, do avanço da criatividade ; sem one-hit wonders havia cessado também a capacidade de verdadeiros talentos se revelarem e passarem o teste do tempo, havia acabado a verdadeira epifania que é alguém escutar pela primeira vez música de qualidade e sentir o arrepio gostoso de ver os pêlos dos braços a erguer-se. Até que um dia tudo acabou abruptamente e a cidade e as suas gentes voltaram ao normal, bom ou mau. Sujo, cansado de todo o seu labor educativo e com falta de sono, o homem das traseiras deitou-se num banco de jardim, falando sozinho, repetindo vezes sem conta a glória dos seus feitos e acertos, como havia instituído sozinho um Reino da Consciência. Nem se deu conta de ser levado em braços por braços fortes, vestidos de branco ; deu entrada num hospital psiquiátrico onde jura que não é louco. Os outros loucos dizem-lhe exactamente o mesmo, e ele apercebeu-se que poderia finalmente descansar em paz. De miseravelmente único e diferente, passou a ser o primeiro entre iguais.

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