quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Contos do ciclo "Os Animais" - I

CÃO "Furaram-me os tímpanos com o estilete da verdade seca, escreveram na minha pele runas do meu destino ainda por criar, esses sacerdotes cegos, de negro, ; fui lavado com vinho produzido por criaturas que regressam à terra ao amanhecer, e deitaram-me no altar esculpido na pedra mais antiga do Mundo ; bebi de uma taça rude e pesada, e mergulhei num semi-sono e semi-sonho em que fui extirpado e aliviado dos tentáculos em que me aprisiono e do bolbo com que semeio gotas de cristal por canteiros que pertencem a jardineiras não tão inocentes, e tornei-me um deles ; parecemos uma corrente de sangue negro fluindo pelas veias da terra e do tempo até que as montanhas sangrem e as malvas sequiosas suguem o visceral suco e gemam de deleite, enquanto se roçam nos rochedos, onde repousam as matilhas prontas para o saque do Verão ainda oculto na neblina. Vi-a, e escutei-a : com um volteio da sua capa, a sacerdotisa ergueu uma mão e ordenou o início do massacre e do festim, e um mar de gritos ecoou pela encosta descendo até às aldeias. Corri, com os meus irmãos mastins, pela encosta abaixo ; cães-de-guerra obedientes na valsa da fragmentação dos alicerces do bom e belo. Abri as fauces e não hesitei em engolir fontanários da água pura e doce dos dias de ingenuidade ; dispersei garras de ferro que a sacerdotisa nos deu naquela noite em Plutão, e saciei desejos imortais que não são meus até que se fez um silêncio sem tempo e sem espaço, medido por uma ampulheta em que os grãos de areia são planetas. CORVO Aí acordei no corpo de um corvo pousado no pináculo de uma igreja de província, observando o funeral de uma jovem bela e pálida que havia sido a pupila e concubina de um poço de amargura com duas pernas que marchavam sobre os corpos dos pequeninos vomitados dos portões negros de uma fábrica de desespero que jamais vê a luz do dia ; o seu negrume abafa qualquer paixão mas não todo o amor ; havia lugar para o amor às coisas que não correm bem, amor aos ciprestes bem aprumados em acres de musgo e pedra. Os que assistiam ao funeral degustaram a brancura da jovem pálida como um cogumelo mágico e entregaram-se a uma orgia em camas de mármore e almofadas de granito onde estão inscriptas mensagens curtas e simples, telegramas para o Além cujos destinatários são assim lembrados ; eu, o corvo, gritei os seus nomes numa litania mas não derramei lágrimas ; soltei as minhas penas negras, que formaram um véu sobre o rosto da pálida virgem loura, como quando a Lua tapa o Sol, e a orgia terminou com os gemidos da rainha -mãe satisfeita de ruminar os seus súbditos que a consolam de apetites gerados no seu seio inchado de desejos de proporções pré-históricas ; engole-os na sua caverna húmida e escura e regurgita-os para transformarem o mundo. Esvoacei dali para fora...fui caçado por quatrocentros falcões reais que me atordoaram, e caí num bosque. JAVALI Eu afocinhava pelos bosques em busca de trufas quando ouvi a trompa de caça e comecei a correr para fugir das lanças que me querem empalar, empunhadas em caçadas organizadas por um castelão louco e grosseiro, nascido da união maldita de um fauno e uma camponesa inculta como a terra triste e dura que a viu desfolhar amores perfeitos e imperfeitos depois de se banhar em riacos que lhe querem mal. Senti uma imensa dor final quando fui perfurado pela farpa do castelão - endurecida nas cinzas da forja do ferreiro de quem raptou a filha - guarnecida por cravos retirados do ferro de um cometa cuja queda formou nas suas florestas uma cratera que parecia um círculo do Inferno e dei comigo baptizado pelo fogo e pelo fumo, rodando num espeto, num carrossel de luz e calor onde me encontrava assar depois da caçada. às voltas, eu revirava os meus olhos inchados e fora das órbitas, olhava ora para o castelão, ora para a chaminé através da qual a Lua era um pontinho de luz ao fundo de um túnel virado para o Céu onde me eram prometidas conversas com caçadores celestes. Foi-me retirada uma perna e fiquei manco, e essa perna foi levada para a pesada mesa de carvalho, de onde caíram gotas de gordura que formaram no chão letras e palavras que os cães lamberam para se nutrir de conhecimento ancestral, ditado por inteligências que esqueceram o próprio nome ; e nelas leram a profecia de um bando peludo tomando de assalto um castelo ; ouviram um imenso estrondo e com terror viram os meus irmãos javalis a irromper pelo salão, ao meu resgate. Queimado e magro, coxeei até ao castelão, comi-lhe a língua e tornei-me o primeiro da minha raça a falar.

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