quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Contos do ciclo "Os Animais" - II

GAIVOTA Já vos contei de quando sonhei que era uma gaivota ? Era uma gaivota no meio de outras gaivotas, vogando patetica e preguiçosamente em águas paradas e oleosas de uma doca onde se acumulam destroços de embarcações enventradas e ferrugentas, povoadas de fantasmas de viagens passadas e marinheiros desdentados, tatuados nos braços com sereias mal desenhadas em portos onde estivadores carregam o pão de uns e o vício de outros, parecendo uma fila de formigas, numa labuta cujo fim calha no fundo de um copo mal lavado. Alçámos vôo na esteira de uma traineira, à espera das entranhas de peixes que não souberam escapar a tempo do bloqueio de redes onde por negligência também se afogaram as filhas de Neptuno ; o mar fede de espuma vermelha e vísceras de peixe e o prémio das gaivotas ainda mal começou ; depois voámos em bando para a lixeira da cidade e mergulhámos os bicos nesse campo pestilento de vaidades, juncado de monturos de desperdícios da sociedade ; separamos habilmente restos de comida de caixas de brinquedos, e são travadas lutas de poder por um pedaço de carne putrefacta rejeitada até pelas ratazanas, esses seres sensíveis sempre presentes nas desgraças de um mundo que eu também rejeito filosoficamente quando dejecto na cabeça da estátua de um rei do século XVIII. Esgravatei, indolentemente, até ouvir falar a cabeça de peixe que tinha dentro da barriga. PEIXE Enquanto peixe - antes de ser cozido e posto no prato de um menino doente, esmagado por presentes e beijos de tias trintonas, redondas de bolo de aniversário lá do escritório onde ano após ano se compete pelas férias o mais exóticas possível - enquanto peixe, nadava em cardumes em que somos iguais e indistinctos, à procura de peixes mais pequenos e fugimos de peixes maiores que nós, de que nos refugiamos em latas e pneus velhos deitados ao mar, e outras vezes em corais corroídos pelo zinco de um couraçado que se afundou arrastando consigo centenas de homens na sua última batalha ; venho à superfície e vejo mulheres e filhos e namoradas agitando lenços e lançando à água coroas de flores, entretecidas pelas namoradas que daqui a um ano já namoram outro ; navego por esse jardim fluctuante e leio os cartões antes que se dilua a tinta, e o que leio depois repito-o aos mortos lá em baixo e eles juram regressar para abraçar as mulheres e oferecer-lhes colares de pérolas e grinaldas de algas e crucifixos feitos de dente de narval, em uníssono cantando canções do mar e da terra. E uma dessas canções falava de um burro. BURRO Sendo burro, administrava sabiamente as recriminações escritas numa ficha por um tiranete que me vergastava por não gostar das mensagens de amor que recebia da filha do moleiro, que sentia por ele um amor não retribuído ; ele preferia espiar os rapazinhos à saída da escola onde eles aprendem as primeiras letras e palavras escritas em pedra ; a alguns deles chamam burros e esses vêm ter comigo pedindo que eu lhes diga o que é ser burro e como são as coisas na República dos Burros ; e eu abro com os dentes sacos de verdade bem moída e refinada, que espalho em mesas improvisadas e circunstanciais, em lições que se prolongam pela noite fora em procissões de vela acesa à floresta, onde entoamos coros em que os pequenos se tornam grandes e os humildes são exaltados longe das dictaduras das coisas bem arrumadinhas nos armários fechados dos que escondem temores inconfessáveis, incompatíveis com a justiça e a verdade pura e fresca dos prados verdejantes onde este e outros burros são finalmente livres e onde pulula toda a espécie de criaturas, por exemplo gafanhotos. E eu fui um deles. GAFANHOTO Foi nesse prado que nasci como gafanhoto, e lá fui feliz antes de uma catástrofe natural nos haver forçado a causar outra. Reunimo-nos todos no parlamento dos gafanhotos e decidimos, num acto de desespero, iniciar uma praga bíblica ; e assim vi civilizações dizimadas e povos inteiros a fugir em direcção ao mar e às montanhas no topo das quais residem os seus deuses, severos e inacessíveis. Levado por um capricho de curiosidade insaciável, agarrei-me com as minhas poderosas garras de gafanhoto aos andrajos imundos de um dos muitos infelizes cuja desgraça causei, e subi, assim escondido, ao cume da montanha onde os deuses, reunidos em magna assembleia, faziam um intervalo para o café ; uma deusa queixava-se que tinha um buraco na meia e outro, aborrecido, afiava lápis nos dentes de um dragão adormecido com discursos motivacionais da treta e relatórios de contas redigidos por escribas formados em Gestão em academias de mestres cegos que declamavam poesia nas aulas enquanto se babavam com torrões de terra que mastigam sem convicção ; e os deuses admoestaram as gentes pela sua falta de fé, que apontavam em gráficos e estatísticas em que nem eles mesmos acreditam ; mas insistiam que sim, que o mundo é belo e a vida vale a pena ser vivida, e que todos os males do mundo passariam, serão erradicados e esmagados como quem esmaga um insecto. Ora eu, um insecto, não gostei do que ouvi e saltei dali para fora. Saltei, e noutra criatura saltante me vi. CANGURU A paisagem era seca e eu, o canguru, vi as minhas crias a jogar na bolsa, apostando vidas futuras e chocalhos de cascavel com que afastam enguiços e espíritos da noite, de que ouvem falar em lendas contadas pelos velhos sábios da tribo à qual roubamos fruta que eles apanham em esforços mal recompensados ; temos o hábito de, por despeito, rejeitar pelo traseiro os caroços na estrada poeirenta na esperança de que de repente nasçam árvores que provoquem acidentes de viação ; declarámos guerra à espécie humana que nos rouba direitos e cerceia a esperança de construir um novo mundo nem melhor nem pior, mas o nosso ; onde queremos árvores onde nos possamos dependurar, mascar tabaco e cuspir na cabeça do vizinho de baixo, e relaxar enquanto falamos das vidas uns dos outros ; onde possamos criar os rebentos de bétula que gostamos de roer enquanto observamos o pôr-do-sol ; onde falamos sobre como será glorioso o futuro assim que chegar o nosso rei, regressado de uma batalha onde pereceu há séculos ; em que satirizamos mordazmente as cólicas e os calos da vizinha, que tem um bébé que não se cala depois de ouvir falar impostores elevados à categoria de profetas das comunidades de quem defraudam o cofre de esmolas, o azeite das lamparinas e o vinho da comunhão. O dia-a-dia de um canguru é feito de bisbilhotices e de jornais gratuitos deixados no autocarro depois de passarem por mãos sebosas e mãos com cunhas de gel de meio metro, perfumadas de cremes baratos e esperma brotado de sexo de apaziguamento após uma violenta discussão doméstica ; sexo na cama de onde foi enxotado o gato que, indignado, saltou janela fora e contou a sua estória. GATO Uma das vantagens de se ser gato é que nunca nos enganamos. Fazemos juízos e avaliações tão acertados, que um dia destes fui convidado para integrar um estudo dedicado à perseguição de filhos e netos de antigos nazis refugiados na Argentina, criado por um grupo de trabalho que crê que os filhos devem pagar os erros e as dívidas dos pais ; vesti uma camisa de marca, um casaco, pus uma gravata, e ocupei o meu lugar à cabeceira de uma mesa à roda da qual estavam reunidas as mentes brilhantes, assistidas por assessores e competentes secretárias, todas de cabelo apanhado num carrapito ; a semelhança é o preço da eficiência, nestes meios. Alisei os bigodes com a pata dianteira e propus o meu projecto, repleto de ideias e estratégias brilhantes, com recursos tão variados como infiltrar ratos telecomandados nas paredes e caves das instalações do inimigo ; esmagá-los com uma avalancha de latas de comida para gato quando eles saem pela porta das traseiras do hotelzito barato onde se encontram com a amante ; esfrangalhar os seus nervos com imperativos categóricos miados à capela, em dó maior ; arruinar os seus sofás tipo Moviflor com as garras que afiamos cruelmente nas pedras da calçada. O meu plano foi aprovado por unanimidade, recebi uma reforma dourada e o título de Rei dos Quintais de Buenos Aires, à beira dos quais olho preguiçosamente para os cavalos que passam. Saltei para o dorso de um, e de repente ele era eu. CAVALO Puxava uma caleche de turistas que sorriam estupidamente, eu!, que fui uma glória das corridas e um garanhão pai de cavalos que figuraram em touradas e épicos de Hollywood; rompi fileiras de infantaria em memoráveis cargas de cavalaria em que se cobriram de heroísmo jovens tenentes franceses por quem suspiravam as debutantes do reino ; elas soltavam risadinhas e gritinhos e trocavam entre si bilhetinhos nos intervalos das lições de piano e geografia, onde aprendiam os nomes dos locais distantes e quentes que precisavam de saber, onde iriam assumir o seu lugar de senhoras tirânicas ou santas, depois de desposarem burgueses e mercadores untuosos que assim financiariam a sua casta nobre as arruinada por pestes e revoluções de populaça ranhosa e descalça, inspirada por amigos do povo incorruptíveis e sanguinários com um fantástico e oportuníssimo sentido de História. Eu, o cavalo, nutri com o meu estrume os campos de onde se alimentaram as gentes que depois me conduziram a esta ignominiosa servidão e ao tédio mortal ; enxoto com a minha cauda moscas que reencarnarão em homens poderosos e martelo com os cascos como tambores de uma marcha de imbecilidades e freaks tornados os novos povos eleitos ; os meus óculos de sola não tornam mais estreitas as minhas vistas do que as daqueles homens e mulheres que supostamente têm olhos e mentes livres, abertas mas tapadas num cocktail de orgulho e arrogância de onde fede a bosta que têm dentro do crânio e à qual chamam cérebro ; bebem-na em bebedeiras de ciência e frascos de laboratório e saber ruminado em pasta de papel ; e é com suprema indiferença que recebo palmadas de agradecimento, excepto as do rapaz de estrebaria vesgo que bem me trata e acarinha ; eu sinto e sei que somos amigos e ele abraça-me e senta-se num fardo de palha, vira o boné para trás e diz-me que em breve iremos fugir, depois me soltar e lançar ao chão coberto de feno a beata que fuma. Uma nova vida, baptizada no fogo. E, no parapeito da janela da estrebaria, escutei tudo isto quando era um pombo. POMBO (cont.)

Sem comentários:

Enviar um comentário