sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Contos do ciclo "Os Animais" - III

POMBO Ouvi a conversa que o moço de estrebaria estava a ter o cavalo e pensei "Eh pá, conversas de revolução e liberdade, deixa-me te diga...as coisas não são bem como se contam...és um cavalo velho e asas para voar tenho-as eu, não és propriamente um Pégaso". Liberdade e revolução testemunhei-as eu, o pombo da praça onde se arregimentaram milícias de empregados de comércio que escrevem poesia nas horas vagas e senhores de colete e chapéu de coco, e tropas mal organizadas e voluntários e sargentos de província, bem intencionados, formados em valores vagos e carbonários, resfolegando palavras de ordem que leram em panfletos impressos em tipografias a vapor de onde saíam para o grémio onde se penduravam como morcegos depois da ginginha no Rossio ; vi muitos cavalheiros desses, de jasmim na lapela, a namoriscar a sopeira que depois regressava em desgraça a Cinfães do Douro onde o seu pai se arrastava aos pés do prior para que este não condenasse ao Inferno a pobre moça desmanchada ; também escutei a banda a tocar no coreto enquanto olhava o oficial de monóculo e pingalim de braço dado à piedosa esposa que ansiava por voltar à novena a Nossa Senhora e ao alegre chá cheio de caridade e brandy na chávena, e ao cordial antes de adormecer no seu quarto abafado onde se sufoca de interiores victorianos e decadência fin-de-siècle ; nesse quarto que onde se suspira gravuras indecentes que se escondem à pressa sob os lençóis, para serem sublimadas pelo romance pudorado. As senhoras dão as suas ordens à sopeira que namora à janela com o mordomo do comendador que anseia ser ministro e Par do Reino do Rei que já não governa mas ainda reina num reino de imaginação e naus da Carreira da Índia, vestido de mantos de arminho em palácios neo-clássicos e albergues onde a rainha é a cólera e a disenteria ; acenando para a ralé que o acarinha mas também acarinha o sonho de um dia ter sapatos e ter no prato não uma mas três sardinhas descarregadas da fragata que é a nave da loucura que é fazermo-nos ao mar. Assim os vi e os recordo todos quando passaram pelos meus olhos ; felizmente os meus olhos tenho-os um de um lado e o outro do outro lado da cabeça, para poder ver o que quero e o que não quero, assim posso dizer que não fecho os olhos à verdade...vejo tudo isto, agora que como as migalhas do pão que o Diabo amassou, partilhadas e lançadas pela velhinna perneta com a sua sacola de chita gasta e esburacada, e pelo submisso amanuense ali sentado, de nó de gravata tão desfeito como o seu espírito acabrunhado pelo insucesso e pelas esperanças carimbadas com o selo do desespero, pela mulher dominadora, pelo chefe da repartição a quem um dia, alcoolizado, dirá todas as verdades antes de se lançar da ponte que conduz a muitos destinos mas a ele para uma viagem sem regresso. Tal como eu, hoje um pombo cheio de parasitas e tuberculoso, levantarei vôo pela última vez e pousarei na mão direita do Cristo-Rei que me transformará numa pomba carregando no bico um ramo de oliveira. Ao contrário do que se possa dizer, os pombos não são ratos com asas. Ratos são os outros. Como eu fui. RATO Esfrego o focinho na antecipação, e as mãos de contente, quando constato que se fez silêncio e posso sair do meu buraco perfurado na parede velha, verdadeira alfândega e entreposto onde acumulamos algodão sujo e cotão em ninhos de papel de jornal e revista cor-de-rosa de onde retiramos verdadeiros exemplos de vida e conduta...por isso é que se diz "procriar como ratos" ; rasgamos belas imagens de raparigas que aspiraram a top model mas tiveram que se contentar com o catálogo de venda de roupa; lemos, divertidos, antes de hibernar de papo cheio de comida roubada da despensa de um novo rico qualquer ;e dançamos e cantamos e rimos que nem uns loucos pelas putas e pelas disputas do mundo acima do nosso mundo subterrâneo, onde as pessoas se louvam umas às outras em actos de heroísmo solidário e se criam santos seculares ao sabor de uns instântaneos de canal de TV noticioso e da foto do dia, e em clicks e likes infantilizados de rede social, prenhes de fotos de bolos de aniversário impossíveis e adoráveis bébés louros de olho azul e gatinhos de calendário com um barrete de Pai Natal ; não conseguimos deixar de rir, com tantas boas intenções, de boas intenções está o Inferno cheio... O mundo é um sítio estúpido, instável e insano excepto para o Rato, esperto e cheio de coragem planeada em planos conjurados em porões e sótãos onde alimentamos a nossa audácia em velhas arcas de recordações que agora não interessam a ninguém e de fotografias de meninos vestidos de menina, de cabelos encaracolados a ferro quente, e meninos sempre vestidos de marinheiro, montados em cavalos de pau ; exercitamos os nossos movimentos em vigas carcomidas por térmitas ; enfiamos a cabeça para entre os ombros, e o chapéu fedora encobre o nosso rosto longo e afilado ; puxamos para cima a gola da gabardina cinzenta e espreitamos o sono sem sonhos do bêbedo caído no chão imundo, do sem-abrigo tapado por cartão velho e sujo ; partimos para os cantos e recantos e esquinas mal iluminadas de becos e vielas onde espiamos os males do mundo de que nos aproveitamos de modo interesseiro, mundo esse que pode até ruir...mas o rato sobreviverá, porque o rato abandona sempre o navio antes dele se afundar. Sonhamos com o dia em que O Rato emergirá, para liderar uma nova ordem mundial, seremos a nova espécie dominante.

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