terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Reflexões, 5 - Diário de um menino doente

E assim me sento a escrever. Tudo e nada. Por razão nenhuma. Mas também por consolo e por amor a esta vida...um amor calmo e sereno de sofá e chá quente e roupão e chinelos, com o gato ao colo. Sei que não sou particularmente esperto. Nem que escrevo com profundidade. Mas não faz mal. Estas listas de textos e palavras destinam-se mais a mim do que a mais alguém, e recreio-me nelas. Sei que são o resultado de uma visão da vida muito simples e íntima e pessoal, são como um pátio em que o Sol só brilha para mim, são como o diário de um menino doente (o que nunca deixei de ser). E por isso estou-me nas tintas para o facto de que ninguém as lê, pelo contrário, são flores que planto e rego neste jardim secreto. Aprendi a amar o silêncio...a ausência de vozes que não sejam as minhas. Não consigo viver longe deste mundo ; melhor, desta comunidade fechada que surgiu em mim deste muito pequeno... Ao longo da minha vida habituei-me ver-me encerrado no meu mundo. Lembro-me de tantas vezes que me refugiava nos meus pensamentos e fantasias, contra um mundo e contra uma vida que repudiava e odiava. Sentia-me e sinto-me violado por nem sempre conseguir combater pessoas e situações que me ofendem ; detesto a brutalidade e a vulgaridade ; detesto profundamente a invasão do meu tempo e dos meus pensamentos, de ver que o meu mundo interior é incompatível com o rumo das coisas. Criei bonecos e brinquedos que só eu via, que podiam saltar e correr como eu às vezes não podia, que corrigiam injustiças... O que é crescer ? Cresci como adulto, cresci pela dor, pelo sofrimento físico e por me ver incompreendido, nunca fui alimentado senão por mim próprio na minha alma. Cresci como espírito e cresci em sabedoria, cresci em maturidade...passei por muitas coisas que me edificaram, experiências de vida ou de morte, amor do Mar...toxicodependência e álcool ; amor apaixonado por uma mulher ; amor da minha família que adoro...cresci emocionalmente numa grande parte dorida da minha vida, numa viagem de descoberta sem fim ; tenho poucas mas boas amizades direccionadas na minha vivência da Fé ; tenho Deus e Jesus Cristo, meu Salvador, Comandante, Rei e amigo...mas sem nunca abdicar da minha vida interna de sonhos, de amor e fascínio pelo mistério e pela fantasia. Se quero incorporar na minha vida o crescimento fundacional que lhe permite ter uma infraestructura, por outro lado não, não quero crescer. Quero manter e nutrir o meu mundo interior ; quero brincar e ser criança ; quero que a minha casa seja a minha casa e o meu oratório, sim, mas que seja o meu quarto de brinquedos. Que seja o meu refúgio onde me possa ocultar dos brutos e dos bullies e brincar, ser quem sou. Quero que seja a minha biblioteca e arca de tesouros, onde possa mergulhar e viver uma aventura que dure um fim-de-semana inteiro. Desejo realizar pequenas encenações e psicodramas em que me perca no personagem ; vou inventar caças ao tesouro, ao mistério, procurar um manuscrito perdido ; embrenhar-me na re-leitura dos meus diários ; ficar dentro de mim, no meu mundo próprio em que tudo é quente e confortável. No meu mundo, em que co-existem três pessoas (eu, a Laura Borges e o Raimundo Vilanova Cabral), as coisas acontecem num tempo mágico sem tempo. Adoro estar só e em silêncio, mas não estou só nem em silêncio. Tenho os meus amigos ; o Raimundo, na sua proverbial impaciência e sobranceria, busca interesses elevados e a aristocrática companhia dos clássicos da literatura, e da poesia espanhola do Siglo de Oro, e da pintura e música barrocas ; Laura, por seu turno, gosta andar por casa vestida com roupas simples e confortáveis, estar na cozinha de roda dos seus chás, e ler estórias de mistério e clássicos de literatura escapista. O meu mundo também tem espaço para aventuras e viagens mais exóticas e, porque não dizer, eróticas. Não é invulgar haver festas em que as pessoas celebram a amizade e o amor ; come-se, bebe-se, ouve-se música de não-pensar, e dança-se...e às vezes solta-se um dragão possante que possui os dançantes ; desde a minha dança guerreira até à dança bacante da Laura, atinge-se um estado de furor e euforia em que se libertam poderosas energias criadoras...e depois dessa tempestade vem um período de acalmia e de amor tranquilo, como um rio que ruge e depois adormece nos seus próprios movimentos. Escrevo porque escrevo, escrevo para mim, para meditar e me comprazer...escrevo como um acto de amor auto-erótico, em que me consolo num amor forçado à solidão. A partir de uma cela de paredes invisíveis, por enquanto, mas de materiais finíssimos num futuro próximo e glorioso.

2 comentários:

  1. "...são flores que planto e rego neste jardim secreto. Aprendi a amar o silêncio..."
    Belo texto, muito íntimo, mas que merece ser partilhado, um poeta (ou escritor) escreve de si e para si, mas depois de escrever, passa a ser de todos, mesmo que só "alguns" os leiam...Parabéns pela Reflexão!!

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  2. Caro Adriano, mais uma vez agradeço que tenhas lido as minhas palavras. É um reconhecimento para mim vê-las lidas e apreciadas. É assim, como dizes : as vidas das letras são para ser partilhadas.
    Abraço

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