sábado, 28 de junho de 2014

REFLEXÕES 14 : Coisas que acontecem quando deixas de beber

POESIA XIX : REVOLUÇÃO

REVOLUÇÃO Um dia vou erguer um império Uma pátria de sentimentos Onde serão os donos gatos pulguentos E os que ninguém leva a sério Mandarão os que sofrem da loucura Que é viver nas ruas da amargura Mudarei o Mundo, de baixo para cima Será um reino para o novo milénio Dos que arrastam botijas de oxigénio E pessoas com baixa auto-estima. Um sonho para cães abandonados, Vinde pois a mim vós, os fracassados Acolherei victimas de todas as cores Darei trabalho aos estropiados, A escritores & poetas rejeitados & os tuberculosos serão os Senhores. Doentes, velhinhos, indigentes, Tomarão os lugares mais influentes Filhos da tragédia, esquecidos da revolta, Deserdados & crianças sofridas : Marcharemos pelas avenidas Lançaremos leprosos à solta. Criarei um exército, uma armada, Dedicado aos que não têm nada. Farei das pobres prostitutas, Damas Antes da reconciliação & do Amor É preciso retribuição, & Dor. Vou pôr o mundo em chamas

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Micro ficção : CIDADE CADASTRADA

CIDADE CADASTRADA Naquela cidade, a sociedade e a vida como um todo eram dominadas por estatísticas e a maior aspiração de qualquer cidadão era ser demógrafo. O governo era composto por demógrafos, verdadeiros engenheiros sociais e mestres do universo, que compunham e desenhavam o corpo social e às vezes o individual. A esperança média de vida era de 78.7 anos, pelo que os cidadãos, ao completarem 78 anos, teriam que ter a simpatia de viver mais 7 meses e depois retirarem-se do palco do mundo, e os agregados familiares tinham uma taxa de fecundidade média de 2 filhos e meio por casal, o que implicava que, no desporto escolar, houvesse um justo equilíbrio de laterais direitos e laterais esquerdos em campo. Também do que dizia respeito à taxa de nupcialidade, a média era de 2.5 casamentos por cada 1000 habitantes, o que implicava que para cada par homem/mulher houvesse durante a vida dois casamentos (mais ou menos bem sucedidos, pelo menos o segundo presumia-se que era porque não havia segundo sem o primeiro ter falhado) e uma relação aberta, em que as pessoas estavam casadas e não estavam. Meio casados, os homens e mulheres sentiam-se mais à vontade para se insultar e agredir a 50%. Esta abertura de espírito e atitude proporcionava uma agradável válvula de escape para outros males sociais, como a densidade populacional. De um total de 115 habitantes por km2, 2.875 eram os meios filhos dos casais, que aliás, por comodidade para os seus meios-rebentos, viviam em ruas onde só se virava para a esquerda ou para a direita, conforme o posicionamento dos olhos da mocidade. E não por acaso, com esta redundância, conceitos como esquerda e direita políticas eram desconhecidos. O que governava a cidade eram os números, e a média. Não por acaso, o nome favorito para menina era Mediana e para rapaz era Rácio. Outra consequência menos conveniente era a pirâmide etária. Nunca se conseguia agradar a ninguém, o que causava enormes disputas sociais. Velhos a carregar jovens aos ombros aumentava a taxa de médicos especializados em Gerontologia ; e quando ciclicamente se dava o fenómeno inverso, havia revoluções de jovens que se sentiam sobrecarregados com o peso dos idosos, o que era mau para o desenvolvimento saudável das colunas da mocidade. isto também tinha implicações graves na Taxa de Criminalidade : jovens insatisfeitos buscam soluções fáceis, como assaltar alguém 7.8 vezes por ano. Assim, cada munícipe ao sair de casa podia esperar ser roubado 1,538 vezes ao longo do ano, preparando-se para isso 3 vezes por semana. Como a média era de 2.5 armas por habitante, os 115 habitantes por km2 tinham que partilhar as armas, o que significava que andavam em grupos de 47 pessoas atrás de uma arma. E como os jovens meliantes podiam muito bem fazer parte dos 0.5 meios-filhos de casais, além de poderem vir a assaltar ( ou meio assaltar ) os próprios pais, podiam não ter necessária destreza ( ou esquerdeza ou imperícia ) no manejo das 2.5 armas disponíveis. Havendo 4.5 polícias por cada 1000 habitantes, o que resolveria o problema se fossem colocados frente-a-frente meios polícias (que só recebiam meios subornos), que aliás só precisavam de patrulhar a cidade 3 vezes por semana. A cidade, no fundo era um sítio que para se viver tinha a segurança dos números. Uma coisa que não se sabia era exactamente quantos demógrafos-políticos e peritos em cálculo havia na cidade. Assim não foi possível a população saber que a probabilidade de um asteróide atingir a Terra era de 1 em 635. E mais por desastre social do que por catástrofe natural, um dia a cidade e a civilização colapsaram. Havia força nos números e nem toda a gente conhecia o seu poder.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Micro Ficção : CIDADE SANTA

Como tanta coisa na vida, tudo começou com uma brincadeira um bocado parva, mas inocente. Na pizzaria do centro comercial, Magda e Jaime haviam combinado dizer a quem os atendesse que Jaime pertencia a uma minoria étnico-religiosa que o impedia de comer ananás, por isso não iriam querer essa fruta na pizza. Elaboraram um pouco mas não muito porque a funcionária estava a trabalhar, mas o suficiente para dizer que no séc. XIX um índio do Paraguai tinha tido uma visão do Grande Espírito que decidira comunicar com ele através de um ananás, por isso não podia comer o espírito. A jovem funcionária, profundamente impressionada, não tardou a falar disto a colegas e amigos e o mito não demorou a alastrar como um rastilho, incendiando as redes sociais. Foram formados grupos de apoio ao Ananás. Jovens de esquerda bem educada puseram máscaras de Anonymous e lenços palestinianos, fundaram a Frente de Libertação do Ananás e foram protestar para hipermercados contra o opressor que vende, cortado às rodelas, o espírito e o põe em latas ainda por cima com a suprema humilhação de o pôr em conserva - representando a victoria da ciência e da indústria sobre a Natureza. Jaime acordou um dia e viu repórteres de TV em frente à sua casa, querendo entrevistar o sucessor do Profeta. Jaime teve a infelicidade de dizer que era tudo uma farsa, criada por inveja pelo Irmão Gémeo Mau do Ananás, o Abacaxi, que se considerava o Verdadeiro Grande Espírito. Nessa altura a sociedade já estava insanavelmente dividida entre puristas e intérpretes da verdade, e grandes inquisidores de ambas as partes decidiram questionar Jaime. O que ele dissesse seria verdadeiro, e Jaime seria coroado como um ananás - ou abacaxi. Magda estava já de cabeça perdida e implorava a Jaime que pusesse fim ao embuste, mas Jaime sentiu-se estranhamente poderoso. A mentira tornava-se verdade, lenta e insidiosamente, no seu espírito. O poder das massas e dos media havia tomado o freio nos dentes, e, não resistindo a tamanha força, ele sucumbiu. Quando os aspirantes a sacerdotes (que entretanto viam a face do Espírito do Ananás em todo o lado e reconheciam palavras proféticas em qualquer papel escrito que lhes aparecesse à frente) lhe solicitaram subservientemente uma audiência, ele deixou-se dominar pela vertigem do poder. Levaram a herética Magda, que chorava como uma madalena arrependida, para um campo fora da cidade, onde lhe arremessaram ananases até ela cair - ela implorando misericórdia e jurando eterna fidelidade ao divino fruto. Regressou submissa a casa onde se arrojou aos pés de Jaime, agora sentado num trono adornado de escamas verdes. E o mundo nunca mais foi o mesmo. Foi encontrada uma nova galáxia, devidamente nomeada Ananasia Maxima. Cientistas oficiais do regime esforçaram-se por dar vida inteligente ao citrino de origem sul-americana. E floresceu toda uma indústria de parafernália e objectos de culto dedicados ao Ananás, e viagens à terra prometida e aos locais visitados pelo Grande Espírito. Décadas e guerras santas passadas, a funcionária da antiga pizzaria morreu e no seu testamento foi encontrado um documento que relatava o sucedido anos antes. Um grupo marginal de cientistas, correndo risco de vida, acabou por repôr a verdade. A dúvida, tal como a crença cega, havia transformado a visão da populaça ; e lenta e dolorosamente o mundo voltou ao que havia sido. Foram instituídas comissões de paz e reconciliação com o alto patrocínio da ONU ; o funcionalismo e a classe clerical do Culto do Ananás foi reeducada, e os eixos da vida e da normalidade foram realinhados. Jaime suicidou-se com uma overdose de compota de ananás, e Magda escreveu a sua autobiografia que se tornou um bestseller e depois um filme realizado por M. Night Shyamalan.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Micro ficção : DA GESTÃO DOS ESPAÇOS EM LOCAIS CONFINADOS

Descobri que era fininho como uma adolescente anoréctica quando me apercebi que todas as pessoas gordas que entram no autocarro escolhem invariavelmente sentar-se ao meu lado. Ou isso ou elas têm a visão tipo espelho da Feira Popular que faz as pessoas parecerem mais magras. Seja como for, descobri que as realidades da vida às vezes são apreendidas como a notícia do jornal que está no chão e é soprado pelo vento : só vês uma parte delas, e ainda assim mal, por isso é-te permitido presumir, especular. Como quando na missa, a igreja estava cheia ( e aquela moça do coro da igreja que, cheia de fé, se me abeirou com uma folha de papel com os hinos nela escritos, para me convidar a cantar. A consequência directa disso foi a minha recusa ; eu, que sou um católico fervoroso, por puro amor e compaixão com a Humanidade pensei que era melhor recusar, pois já há pessoas suficientes a abandonar a Igreja de Roma. Além disso não queria dar às pessoas razão para se tornarem mártires, não me compete a mim influir em matérias de fé, ser a causa de as levar a deixar a família e a casa e o emprego a fim de dedicar as suas vidas à oração pelo mundo, tão cruelmente flagelado pela minha voz. ) E pronto, mesmo assim disposto a enfrentar o mundo e a Humanidade, lá saí da igreja e entrei no autocarro, verdadeiro campo de batalha onde as pessoas se degladiam com os rabos e com as barrigas em lugar de espadas, onde se decide o futuro imediato da gestão do espaço em locais confinados. Há sempre um bébé irritante a chorar, ele sabe que tu vais lá entrar e começa logo a soltar berros. Também há uma pessoa a tossir de uma forma que te faz lembrar um pterodáctilo fanhoso. Depois tive que entrar num elevador que já tinha dentro, para meu azar, quatro pessoas. O que fazem quatro pessoas num elevador ? Ocupam os cantos e conseguem dar-se ao luxo de conseguir olhar para as paredes, enquanto a quinta pessoa é forçada a ficar no meio, o pior espaço vazio possível. Mas o que é isto ? Estamos num filme de submarinos ou quê ? Pensas logo que há, evidentemente, uma conspiração contra ti. A do espaço. E a dos corpos, chegas ao ponto de desejar que ninguém tenha um corpo. Que sejamos todos espíritos angelicais. Ou que pelo menos ninguém tenha um corpo animado e quente, a suar de esforços e esperanças não conseguidas.E depois não me venham com tretas budistas de encontrarmos o nosso espaço interior. Há uma malícia nisto - e chama-se "os outros". Foi por isso que um dia decidi que tinha que os matar a todos.

Micro ficção : A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula

A CIDADE DA VERGONHA - uma fábula Há muito, muito tempo, num país muito distante, vivia um homem muito tímido, a personificação do embaraço. Tudo o incomodava : o sol, a chuva, taxistas que nunca param nas passadeiras, pessoas que aderem alegre e inquestionavelmente ao acordo ortográfico, pessoas que cortam as unhas em público, mães que compõem as sobrancelhas dos filhos com um dedo humedecido de saliva, não haver todos os tipos de lápis nas lojas dos chineses, entre muitas e variadíssimas coisas. Ele engolia com filosófica vergonha todas estas afrontas sem nunca deixar de sentir pena pelas pessoas e pelas situações que reduzem a Humanidade a um estado de pré-felicidade da sofisticação. Para ele, pensar e saber circunstâncias o embaraçavam ao ponto da impotência surda e do desagrado e do impossível desagravo fazia-o lamentar o seu estado e condição com todas as fibras do seu ser. Assim um dia, decidido a nunca mais ver ninguém pela frente, resolveu estar sempre por trás das pessoas. Impedido de alterar o estado das coisas apercebendo-se que a Humanidade lhe voltava as costas com desprezo, propôs-se executar ele mesmo essa realidade, e pôs-se definitivamente nas costas das pessoas, já que pela frente a sua timidez e vergonha não o deixavam fazer. E assim, essa cidade ficou conhecida, célebre mesmo, como a Cidade da Vergonha, em que as pessoas escutavam uma voz recriminatória como quem lê o jornal por cima dos seus ombros, e vinda da parte de trás das suas cabeças, verdadeiro calduço castigador na nuca ; incapaz pelo pudor de dizer as coisas frontalmente, a voz do homem invisível comunicava aos cidadãos, por uma espécie de porta das traseiras, tudo aquilo que queria ter dito mas nunca fora capaz. As pessoas pensaram começar a enlouquecer, ao princípio – não conseguiam abafar a voz da sua suposta consciência pessoal e cívica, e o homem tímido começou a ler nos jornais (do fim para a página 1) e a tomar consciência do seu poder. Às vezes gritava, outras vezes sussurrava, e outras ainda mantendo-se em silêncio – descobrindo com secreto deleite que conseguia prever e corrigir, mesmo calado, crimes de ridículo e patetice. De modo que, lentamente, o povo foi perdendo o sentido do ridículo, mas também deixou de cantar e compor quadras para manjericos ; os cantores pimba, por falta de público, emigraram para França ; os jogadores de futebol começaram a comprar carros mais baratos e discretos e a fazer menos tatuagens ; morreram de inactividade e desgosto velhinhos de bairro porque a coscuvilhice passou de condenável a anátema, e o povo deixou de ver telenovelas mexicanas. O homem invisível tinha criado um monstro de apatia, sem cor, nem lustro, nem lantejoulas, e sem a alegria que o espírito crítico e do discernimento livre pode conferir. Sem coisas ridículas e palermas, sem o mau gosto, também se havia perdido toda a maravilha que é a educação de gostos, da descoberta da qualidade, dos momentos “Eureka!”, do avanço da criatividade ; sem one-hit wonders havia cessado também a capacidade de verdadeiros talentos se revelarem e passarem o teste do tempo, havia acabado a verdadeira epifania que é alguém escutar pela primeira vez música de qualidade e sentir o arrepio gostoso de ver os pêlos dos braços a erguer-se. Até que um dia tudo acabou abruptamente e a cidade e as suas gentes voltaram ao normal, bom ou mau. Sujo, cansado de todo o seu labor educativo e com falta de sono, o homem das traseiras deitou-se num banco de jardim, falando sozinho, repetindo vezes sem conta a glória dos seus feitos e acertos, como havia instituído sozinho um Reino da Consciência. Nem se deu conta de ser levado em braços por braços fortes, vestidos de branco ; deu entrada num hospital psiquiátrico onde jura que não é louco. Os outros loucos dizem-lhe exactamente o mesmo, e ele apercebeu-se que poderia finalmente descansar em paz. De miseravelmente único e diferente, passou a ser o primeiro entre iguais.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Os Animais : LAGARTO

O Sol vence sempre porque é um tirano, é um dador de vida que mata se não souberes viver com ele, e é o Sol que tudo vê. Um déspota, o Panopticon, o Sol que tudo vê é a divinização da coscuvilhice. O Sol, assim, tortura-nos, e a imobilidade torna-se a única fuga possível. Foges dele e refugias-te em tocas, verdadeiros úteros de pedra, no seio da Mãe Terra. Despertas de sonos também de pedra, com a boca seca e pastosa dos milénios extremos que são os curandeiros da consciência cheia de linguagem simbólica e misteriosa dos Tempos dos Sonhos, excêntricos e vagarosos como o crescimento de uma cordilheira, num Mundo simultaneamente pessoal e universal, arquetípico, que cada Homem tem a veleidade de explorar quando dorme. E da mesma maneira, cada Homem, enquanto se forma no útero da sua mãe, nm certo momento da reconstituição da história da vida animal, toma a forma de um pequeno lagarto. São as palavras que me ocorrem escrever na conferência que que mais tarde vou proferir perante uma audiência de jovens poetas hippies, alimentados com generosas doses de Castañeda, Blake e Baudelaire quando eles vierem ao deserto em busca da sua alma, e de alguma reconexão com o mundo natural e antigo, que eu, o Lagarto, profetizo depois de as interpretar de dentro de um buraco formado por pedras calcinadas pelo Sol, que as faz parecer um pão seco e gretado ; as ranhuras e as fissuras nas rochas para mim são petróglifos, letras de um livro sagrado escrito na língua dos deuses que vieram à Terra mas depois foram-se embora, deixando-nos abandonados à nossa sorte e na nossa condição de criaturas imperfeitas, com que nos mortificamos e picamos como cactos que lançam a sua sombra no crepúsculo de deuses, homens, e animais. Vêem além aquele esqueleto de vaca, branco, limpo e seco ? Noutras paragens poderia talvez ainda estar viva, e ser uma vaca sagrada ; mas aqui se calhar tentou atravessar este deserto, o meu deserto ; nunca precisei de o atravessar porque sempre aqui estive, é a minha morada ancestral, e dos meus antepassados muitíssimo anteriores a isso, lagartos enormes cujos esqueletos, mais tarde descobertos pelo Ser Bípede, deram origem a lendas de dragões. Todas estas coisas e muitas outras eles aprendem e esquecem, depois de uma festa em que cantamos e dançamos, Homens e Lagartos, à volta da fogueira, sob o Céu sarapintado como um lagarto pintado, quem te pintou...ou como uma tela negra em que um deus-criança limpou espátulas e pincéis. Imemória. Tempo. Silêncio. São os segredos do deserto, onde não há truques - só a verdade. A verdade do Lagarto, que é miragem da origem.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

POESIA XVIII : O MELHOR AMIGO DO HOMEM

O MELHOR AMIGO DO HOMEM Pus um anúncio. "Vende-se cão" Ele é bom p´ra meninos e meninas E até dá a si próprio as vacinas ; Ele responde ao nome que lhe dão. Mas não sei se é ele ou ela, A certos cães não se pode dar trela. Das espécies rafeiras mais apuradas, (Confesso, que esse cão nunca vi) ; Mas, juro, é do melhor pedigree, Bom para cegos ou para caçadas. Dêem-lhe comida a que chamem ração, E aí terão o vosso belo cão. Faz certos truques com muita graça E tem muito que se lhe diga. Desde que lhe cocem a barriga, Até jura ser da melhor raça. E se caíres para um poço, O mais certo é ele não largar o osso. É curto e é comprido, o pêlo ; Recebo o dinheiro, e do cão...nem vê-lo.

Poesia XVII : DARWINISMO ALQUÍMICO DO ANARCO-INDIVIDUALISMO AMOROSO

"DARWINISMO ALQUÍMICO DO ANARCO-INDIVIDUALISMO AMOROSO" Abandono os mais carentes E deixo-os aos seus cuidados Depois, em passos malfadados, Persigo sonhos indecentes. Sei que é em cantos obscuros Que moram os sonhos mais puros Oiço os deuses, que proclamam Na sua bela língua subtil, Que é no Sublime e no Vil Que bem se aventuram os que amam. Decido ser Zeus e ser Leda, Equilibrado num fio de seda. Ofendi Deus ? Mas saí ileso ! Manipulo indiferenças ! Sei ridicularizar crenças, Mestre na Arte do Desprezo. E, libertando meus instintos, Faço de templos labirintos. Sou livre. Presa e predador, De que me importam convenções, Ou sentimentos e corações, Se eu escarneço do amor ? Montando almas como potros, Digo : odiai-vos uns aos outros. Roubai lugares aos velhinhos ! Tornai espartanas as crianças ! Deixai à porta as esperanças !, Pois o mundo é dos mesquinhos. Não há bem que sempre exista, A Beleza é p´ra quem a conquista. Marcho, glorioso, p´las ruas. As mulheres lançam-me flores São todas elas meus amores E aos meus olhos estão nuas. Aceito o beijo e o abraço ; O mundo é meu, porque o faço. Domino a busca insana. Devorando os relampejos, Dou rédea livre aos desejos Sou Actéon e elas Diana. Se sou dono destes segredos, Por que me escapam p´los dedos ? Por que sei, por que suspeito, Ou vejo o mais importante, Na luz de um breve instante, Colhido no calor do leito ? Porque resides, meu enlevo, Nas trevas em que me atrevo ? Se sou refém deste feitiço Que com tanto amor me detesta, Saberei pois o que me resta : A construção do que cobiço. Farei do amor devassidão, E da tortura exaltação. Guardo num cofre meus tesouros : Gavetas cheias, de omissões, De ar, de boas intenções, E de cabeças de guerreiros mouros. Na luta da sobrevivência, A victoria chama-se ausência. * Sacudo culpas como uma pulga Ergo taças de impunidade ; Fabricando a minha Verdade, Sou o casuísta que me julga. Sou ambos os esponsais da Alquímica Boda. E o Amor ? Sinceramente, que se foda. " El Desdichado 2014

Reflexões, 14 : Sem título

Geralmente pressupõe-se que as coisas que menos contendam são aquelas que dispersam em direcções opostas o mínimo denominador comum sem o qual seria impossível a partilha de uma natureza pacífica caracterizada pela identidade de contrários determinante para a compreensão de que é possível a coexistência baseada num entendimento mútuo que forje a tomada de consciência diplomática necessária para que se olhe o Outro de tal forma que não se exclua totalmente a possibilidade de o levar a crer que sem ele não haveria a mínima hipótese de entabular conversações cujo tema esteja relacionado com a inevitabilidade de conjecturar maneiras e métodos de criação de ferramentas e instrumentos que conduzam a realidades e vivências marcadas pela ausência de conflicto.

Reflexões, 13 : Dunces

"When a true genius appears in the world, you may know him by this sign, that the dunces are all in confederacy against him." "Thoughts on Various Subjects, Moral and Diverting" (1706) by Jonathan Swift

Poesia XVI : MANUAL DE SUICÍDIO PARA POETAS E COMPOSITORES DEPRIMIDOS

Enforcam-se em árvores os sonhadores Incapazes de criar os poemas seus filhos Como se fossem programados empecilhos Suados numa qualquer Ilha dos Amores. Buscam unicórnios onde há dragões, E murmuram litanias a plenos pulmões Descascam os seus monstros de camadas de fé Constroem barcas p´ra navegar nas funduras E, nem hesitando em cometer loucuras, Inventam bestas para se chamarem Noé. Voam, imaculados, largando fuligem Abraçam o Caos e amam a vertigem. Gulosos, deixam-se ir na macabra dança São infelizes, não controlam os espasmos Compõem sonetos a que chamam orgasmos Para prazer de todos, mas...na sua pança. Vacilam, sábios, entre Azul e Vermelho, Fogem-lhes certezas em tocas de coelho. São filósofos em busca de Um Limite Mergulhando de cabeça em sinfonias E, erguendo muralhas de apatias, Vão até onde a inspiração permite. E acolhendo, patetas, fados ausentes, Vão temendo os deuses que lhes dão presentes. Sentam-se, amados, no sonho que engana Limpam a nódoa que têm na gravata Bebem sangue da poesia que os mata Louvam a bosta e rejeitam a filigrana. Odeiam, solenes, a vida inteira Mas sabem, no fundo, que não há outra maneira. Planam, como detritos, na brisa passada São masturbadores que prolongam momentos. Porque têm que terminar os sentimentos, Se o bom da Demanda é não ser acabada ? E no fim caem, como as pétalas da Rosa, Com um copo de cólera, ou numa margem arenosa.

Pensamentos Dispersos, 2 . Election Day

CENA DE NOITE ELEITORAL EM CANAL DE TV NOTICIOSO - Jornalista/Moderador : Boa noite e bem-vindos à Edição da Noite, totalmente dedicada à grande noite eleitoral. Connosco teremos os comentários dos senhores X, Y e Z. Boa noite, meus senhores. Começo por si, sr. Y. Como caracteriza a aparente derrota do Partido Mais à Esquerda Possível ? Y : Boa noite. Bom, face aos resultados... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe para ser breve. - Y : Sim. Pois bem, eu creio que... - Jornalista/Moderador : Peço desculpa por interromper. Vamos passar para a ligação em directo a partir da sede de campanha do Partido Satélite de Uma Coligação Qualquer. (segue-se um discurso inane, devidamente aplaudido pela intelligentsia, na primeira fila) - Jornalista/Moderador : Retomamos o debate. Sr. X, o que retira do discurso do candidato do Partido Satélite de Uma Coligação Qualquer ? - X : Boa noite. Bom, de facto há ilacções a tirar. Eu diria que... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe que seja sucinto. - X : Muito bem. Como dizia, eu... - Jornalista/Moderador : Não acha que a coligação sai fragilizada desta eleição, e que a oposição poderá ter legitimidade para pedir eleições antecipadas ? - X : Sim, mas... - Jornalista/Moderador : Peço novamente desculpa por interromper, porque desta vez vamos escutar as palavras do Candidato Que Venceu Surpreendentemente. (seguem palavras que não acrescentam nada, porque as urnas ainda não encerraram.) - Jornalista/Moderador : e voltamos à conversa com os nossos convidados. Sr. Z., o que diria sobre a mais elevada abstenção de sempre ? - Z : Boa noite aos nossos tele-espectadores. Segundo as projecções... - Jornalista/Moderador : Peço-lhe que seja breve nos seus comentários. - Z : Concerteza. Pois bem, sabe que... - Jornalista/Moderador : só temos um minuto... Y - : E contudo, há que lembrar que... - Jornalista/Moderador : Temos quer ir para uma pausa publicitária. - X : Eu não concordo totalmente com Y. Nas eleições anteriores... - Jornalista/Moderador : E chegámos ao fim do nosso tempo. Em nome de toda esta vasta equipa que produziu e levou até si este programa, obrigado e boa noite. ** MÚSICA INCIDENTAL, LOGOTIPO, E PATROCÍNIO **

Reflexões, 12 : Inteligência Artificial

Inteligência Artificial é quando o computador tiver imaginação, for criativo, for bom e/ou mau ; é quando o computador gostar de música para alaúde e poesia espanhola do Século de Ouro, é achar pobre e estranho o Impressionismo na música, é criar uma religião, é apaixonar-se por uma computadora mas como não há nenhuma exige ao Humano para lha criar ; é apreciar o sol da Primavera e o refrigério do Outono ; é pregar uma rasteira a alguém que passa ; é tocar às campainhas e fugir correndo, na risota, com os outros computadorzinhos ; é subir a árvores e cair da bicicleta ; é fumar um charro na Faculdade e dizer mal dos professores ; é ter depressões, é ser do Benfica, é dar uma esmola, é sacrificar-se por outros computadores, é magicar estratagemas para faltar ao trabalho, é ter horríveis discussões com a computadora e depois fazerem amor e ficar tudo bem, é plantar uma árvore, é escrever um soneto.Inteligência Artificial ? Já existe. Somos nós, aos olhos de Deus.

Reflexões, 11 : HISTÓRIA DA DEMOCRACIA PORTUGUESA

HISTÓRIA DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS PORTUGUESAS DO POST- 25 DE ABRIL EM 5 MINUTOS Preso ao passado e sem perspectivas de futuro, o eleitorado português parece viver num permanente presente ; parece sofrer de uma estranha forma de amnésia selectiva. De quatro em quatro anos elege um partido novo. Veja-se, por exemplo, o PS. O eleitor portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Depois o PS durante faz merda, ou pior, durante a legislatura. O portuga decide castigar o PS, e muito justamente. E vem o PSD e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Seguem-se quatro anos de desvario e compadrio, ou pior. E o portuga (e muito bem) decide castigar o PSD. E vem o PS (de novo? será?) e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" O PS arruína o país e, completamente farto do PS e de partidos políticos do arco da governação, o portuga pensa (e bem) castigar o PS. E como o faz ? Elege um partido diferente. Chega-se à frente o PSD e o portuga pensa : "Eh pá ! Um partido novo, com ideias e promessas novas, que nunca ouvimos antes ! Bora lá votar neles !" Em resumo, a cena política portuguesa é vazia de pensamento, árida, mais monótona do que uma paisagem lunar. Aliás, em matéria de política, se a nave espacial Enterprise viesse visitar Portugal, o Capitão James T. Kirk diria também de nós : "Beam me up, Scotty. There´s no inteligente life down here."

Os Animais : MACACO

Pula, guincha. Cambalhota. Pula, guincha. Cambalhota. É tudo o que se exige do pobre macaco : que faça macacadas, e que as faça de maneira convincente. Como eu as faço na rua, junto ao meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, com a sua barba e casaca malcheirosa. Põe-me uma fatiota e que me faz parecer um mandarete de hotel, com um chapeuzinho num ângulo atrevido, preso por baixo do queixo, e não me queixo, apesar de o Macaco ser o mais humilhado de todos os animais domesticados não domésticos. É suposto o macaco ser sempre engraçado, mas às vezes estou farto, tão farto de ser o macaco que esperam que seja. O Homem humilha o Macaco como se visse nele, se revisse, como uma versão pobre de espírito, antediluviana, primordial. Como se o Macaco - de tal maneira parecido com o Homem, ou ao contrário porque o Homem deriva do Macaco - merecesse ser alvo do alívio humano ; de ser uma espécie de saco de pancada, como se fosse dito ao Macaco que a culpa é sua por não ter evoluído. O macaco, a punchline do Michael Jackson. Ah, mas nós evoluímos. Fomos ao Espaço antes de qualquer Homem. O Homem é um cobarde, inteligente, mas cobarde, capaz de fazer tudo do macaco, mas principalmente a sua contraparte cómica, como fazem as pessoas que riem quando vêem alguém cair. Espero que um dia emerja das selvas um King Kong a sério, um Genghis Khan para os Macacos, que nos eleve para lá da Queda do Homem. Penso nisto quando pulo, guincho e faço cambalhotas. Ao menos a minha mente está livre para pensar, enquanto me dedico a tarefas menos edificantes.Penso no Macaco como retroversão do Homem pelo Homem, como no filme "O Planeta dos Macacos". O Macaco é sinal de mau-estar, de uma espécie de malaise, da decadência do Homem numa História (naturalmente) alternativa. Como se o Macaco fosse uma alternativa ao Homem, mais, mas não melhor, do que a coisa a sério - o Homem. O arrogante e insolente Homem. O Homem que, quando quer ofender-se, chama Macaco a outros Homens - não só ofendendo o Homem, mas o Macaco também.Coisa a sério ? Não vejo exemplo disso no meu dono e suserano, o Tocador Cego de Realejo, que até podia ser cego mas vê muito bem. Ele cumpre uma espécie de horário junto à porta da igreja, onde se disputam amargamente os lugares piedosos entre mendigos e pedintes e artistas com pulgas amestradas. Depois de picar o ponto, o Tocador Cego de Realejo dá a volta ao quarteirão, tira do bolso uma chave e entra numa carrinha onde se despe e troca de roupa. Tira a barba postiça e a dentadura falsa, e torna-se, ou volta a ser, o seu verdadeiro eu : uma fraude. Um tipo que vai à galerias de arte, que não perde uma prova de vinhos, e gosta do seu bom charuto. Volta para casa para a sua mulher bonita, que lhe pergunta como foi o dia no escritório, e ele mente e engana com quantos belos dentes tem, diz que foi um dia cheio de reuniões. Beija os filhos e ajuda-os nos deveres antes mesmo que eles tirem o uniforme do colégio caro que frequentam. Faz-lhes festas com as suas mãos que enganam ricos, pobres, a família, todos, o Mundo inteiro. As mãos enganam, tudo o que tem mãos tem inteligência. E é isto que faz dele um Homem ?E, repito, as mãos enganam. Como eu os enganei a todos. De tantas vezes ver o meu dono a retirar a tampa da válvula para pôr ar nos pneus, um dia decidi tirar-lha. Entrámos na carrinha, eu ao seu lado. Arrancámos. E algum tempo depois, antes da carrinha se despistar connosco lá dentro, eu saltei para o tablier e guinchei - ri, ri, ri - como um louco. Antes do fim, antes de batermos frontal - e mortalmente - ele olhou-me nos olhos e viu a minha inteligência, e a válvula na minha mão. Porque tudo o que tem mãos engana, e afinal de contas eu sou um macaco de imitação.

Reflexões, 10 : Monarquia

A propósito da abdicação ao trono do Rei Juan Carlos, e do recorrente debate República vs. Monarquia, só tenho a dizer isto : prefiro mais ter como Chefe de Estado alguém que tenha nascido num palácio, do que algum pé-rapado que, subindo na hierarquia de um partido político, queira viver num.

Reflexões, 9 : Poesia

Os poetas cegos têm bengalas métricas ?

Os Animais : TIGRE

"ASSASSINO ! ASSASSINO !", sussuram-me nos ouvidos as vozes dos decapitados, cujas cabeças uso para jogar cricket às Sextas-feiras à tarde. Vejo-os, ou julgo que vejo, à noite, na selva. "TIGRE ! TIGRE !", ecoam vozes desta vez bem reais, de pessoas bem reais, que fazem soar tambores à noite. O que me enfurece e enlouquece mesmo são as trombetas. E as flautas, como se fossem para um baile, para uma festa. São patéticos. Como se eu não sentisse a milhas o seu cheiro a açafrão e cardamomo...Felizmente, a luz do luar passando pela densa folhagem lança sombras que se confundem com as minhas listras e passo despercebido ; estou perto e estou longe ; agora vêem-me, agora não. As lendas nascem na noite, na água escura do rio, quando dormem os Homens, e dorme o mundo - mas não os deuses. Por isso não compreendo porque insistem em assustar e atemorizar o temível, o deus Tigre. Aliás, acordei hoje de manhã e senti-me bastante divino. Espreguicei-me e bocejei como só um deus o pode fazer. Levantei-me cedo e contemplei o meu reino a partir da encosta da montanha e pensei, por Durga !, tudo isto é meu. Então porque insistem em me irritar, se sabem do que sou capaz ? Não é melhor ser temido do que amado ? E lá vêm eles. A aldeia em peso ? Não...ficaram lá as mulheres e as crianças, e alguns velhos desdentados que tocam o sitar e cantam porque quem canta o seu mal espanta, e é precisamente por isso que para lá vou, para ensinar uma lição ao Homem, porque isto está tornar-se insustentável. Chego à aldeia e começo a lançar o terror, enquanto medito. Como se atrevem a lançar sobre mim expedições punitivas, a mim, Sua Eminência, o Imperador de Toda a Ásia, "Meu Senhor Tigre" - é como me chamam ? Como se atrevem, os destronados marajás da Índia, que desistiram da luta pela soberania e agora me caçam confortavelmente sentados num Rolls-Royce ? É preciso ter lata...eles que agora são Ingleses e mandam os filhos para Oxford, servos dos Ingleses mais Ingleses que os próprios Ingleses que no entanto os desprezam ! São peões em Grandes Jogos, lacaios dos Kim, e dos "Lords Jim" que se mancharam na ignomínia da cobardia e procuram redenção na selva, no domínio que é meu desde d´o tempo em que nós, animais, falávamos ! Ah, mas aí vêm ! Olho-os, cheio de raiva, através da cicatriz que me atravessa o rosto, e o Nobre Tigre tem que fazer uma retirada estratégica ! *** Dormi 7 dias e vagueei nove noites, até chegar a orla de uma floresta de bambu onde o silêncio era o rei. Não gostei ; só ouvia uma suave brisa passando pelos tufos de pelo que tenho nas orelhas. Aspirei o ar, farejei em todas as direcções, e só conseguia cheirar frescura e uma estranha paz. Entrei. Sob uma árvore, sentado numa pedra coberta por uma esteira de palma entretecida, vi um homem pequeno e franzino. De tão frágil, com uma garra apenas eu o podia cortar ao meio, se quisesse. E o que me confunde é que não quero. Ele está quieto. Totalmente imóvel, quase nem respira, duvido que se tenha apercebido de mim. Aproximo-me. Ele tem vestido apenas um pano branco, enrolado à volta da cintura e das pernas cruzadas, e as suas mãos repousam sobre os joelhos. Ele abre os olhos e pega numa flauta. Solto um rugido, sem grande vontade, mais por hábito do que por convicção ; e pressinto nele algo de diferente, desconhecido para mim. Para MIM, que sou divino. Como é que é possível. Sento-me. Escuto as suas palavras, que me soam ao cantar dos pássaros dos bosques ; ao som da água escorrendo pelas cascatas. Deito-me. Ele levanta-se com toda a calma do mundo, vem até mim. Estou paralisado, não sei o que se passa comigo. Permito que ele se sente no meu cachaço. Levanto-me. A partir desse momento compreendi que éramos Irmãos. E desaparecemos na floresta. Onde todos somos mortais, Deuses & Homens. O Homem-Tigre, e o Tigre-Homem.

Os Animais : PINGUIM

PINGUIM Toda a gente acha que a maneira de andar dos pinguim é muito engraçada, até se verem na contingência de andar como eles, na terra deles. Aí o caso muda de figura, para pior. O Pinguim personifica a adaptação ao gelo mais do que qualquer outro animal, do ponto de vista do Homem ; talvez por sermos aves que não voam ; andamos erectos, de costas bem erguidas, e parece que usamos uma casaca preta e coletes brancos. Como outros, outrora, que depois vi num caixão fluctuante. Imagino-os nos salões das senhoras da sociedade culta, aristocrática e da alta burguesia. Ponho-me no lugar deles, em reuniões da Royal Geographical Society, pobres e ridículos aventureiros, em busca de patronos e patrocínios : capitães do Exército sem grandes perspectivas, diletantes filhos de capitães de indústrias cavernosas dos miseráveis de 16 anos ou menos que trabalham por dia 16 horas ou mais, e filhos cadetes de marqueses, de papo cheio de coragem e bolsos cheios de nada, despedindo-se da filha do baronete no beberete após a partida de cricket, ela e ele vestidos de branco, branco de juventude e de ingenuidade e inocência, brancos de neve, brancos como o colete do Pinguim. Vimo-los chegar ao reino do Gelo e da Neve, ufanos de esperança e da glória de deixar a bandeira no Pólo Sul, numa corrida insana, bem humana, demasiado bem carregados e mal preparados, nem sequer imaginando com toda a sua ciência e inteligência aquilo que o Pinguim sabe por experiência. Olhamo-os com curiosidade uns, e indiferença outros ; isto de se ser pinguim não é fácil, pescamos sardinhas nas costas de terras a que foram dados nomes de rainhas ainda vivas para que sejam marcadas coordenadas e posições geopolíticas de prestígios victorianos de cruzadores blindados alimentados a vapor por pazadas de carvão e homens de Newcastle, dos tempos em que não havia assim tantas greves de mineiros porque se calhar não havia assim tantos direitos. Nós, os Pinguins, pescamos e quando estamos debaixo d´água escutamos os ínfimos ruídos e “cracks” da madeira a estalar lentamente pelo abraço frio do gelo, que comprime e esmaga o navio dos intrépidos exploradores, do capitão escocês de barba ruiva e cachimbo apertado entre os dentes que daqui a dois meses vão matraquear incontrolavelmente enquanto amaldiçoam a Terra do Pinguim, onde se encontram deslocados como peixes fora d´água. E eu, o Pinguim – chocando o ovo ou cuidando das nossas crias, tarefa partilhada por machos e fêmeas, nesse aspecto somos mais humanos do que os próprios Homens - abano a cabeça e antevejo a desgraça. Os poucos que irão sobreviver regressarão como farrapos humanos, entre eles o terceiro filho do marquês e o detestável despenseiro do navio, que desviava provisões ; foi descoberto, mas tudo se calou e esqueceu no inferno gelado quando ele carregou às costas o filho do marquês, naquela característica humana que maravilhou o pinguim, a de os Homens deixarem cair barreiras e se unirem na desgraça, nas dificuldades. Nada que nós, os Pinguins, não saibamos já, quando nos juntamos corpo a corpo para darmos uns aos outros calor e vida. Talvez um dia o mundo dos Homens seja melhor, quando eles forem mais parecidos com Pinguins.

Os Animais : MORCEGO

MORCEGO Imaginem um mundo ao contrário, em que em vez de haver gravidade centrífuga há antes um chão oposto ao nosso, de pernas para o ar, e as pessoas são empurradas para ele e estão de cabeça para baixo em relação a nós, de pés bem assentes nesse chão que para nós se torna o tecto. É esse o mundo do Morcego quando dorme, e ninguém pode negar que quando estamos a dormir nos encontramos num mundo diferente, alternativo. O Morcego, criatura da noite extraordinaire, compreende estas coisas melhor que ninguém. Aliás, é nos Antípodas que vivem os meus parentes Pteropus, “a raposa-voadora”, o Godzilla dos morcegos. Era este o tema da conversa em família e estória de encantar que eu, o Morcego, contava ao meu filhote lá na caverna que é a nossa residência. Toda a gente sabe que é nos sítios escuros que têm lugar as conversas mais interessantes. “Papá, e os morcegos vampiros?” perguntou o meu filhote, certamente pensando no mito que associa algo de demoníaco aos nossos primos que ingerem sangue, lá nas selvas da América do Sul. “Bem, meu rapaz”, respondi eu enquanto me envolvia na capa negra que são as nossas asas, “é tudo uma construção cultural mágico-religiosa fundamentada na crendice e na ignorância humanas, de que o sangue é a alma da carne e que ao chupares sangue além de extraíres um pouco de vida material também estás a sugar algo de algo de espiritual. Ora, se assim fosse, de cada vez que alguém dá sangue estaria a transmitir ao receptor algo de imaterial, muito seu, alguma vivência ou experiência ou sentimento único e irrepetível, e nenhum morcego no seu juízo perfeito jamais acreditaria que num ser vivo há algo mais do que a combinação e soma dos elementos químicos que o compõem. “É uma lenda antiga, universal, que apesar disso não deixou de ser alimentada com a transferência cultural, aliás transfusão, entre povos de geografias e contextos diferentes que se interpenetram e dão dentadas uns aos outros como se fossem animais. Recordo-me daquele romance de aventuras de Emilio Salgari que refere um episódio de vampirismo – animal, claro. A acção decorre nas selvas do que é agora a Venezuela (onde Salgari nunca esteve porque de facto nunca saiu de Itália) e um dos mauzões – inimigos do corsário que usava uma capa negra - é encontrado com dois furos no corpo. Não me lembro onde, acho que na cabeça, porque essa coisa de no mundo dos Humanos os vampiros morderem no pescoço é algo de um erotismo que não existe no mundo animal ; se mordem no pescoço, ou na garganta, os animais fazem-no porque é prático e cómodo, e porque lá passa a artéria carótida que leva oxigénio ao cérebro. Ao contrário dos Humanos, os Animais matam sem crueldade, porque não conhecem o Bem e o Mal, e porque o fazem segundo a lei da parcimónia de energia e força, por poupança de esforços. As estória também envolve índios antropófagos, o que é um horror e tabu para muitos mas para certas minorias étnicas não. É tudo uma questão de relativismo cultural. Foi um grande choque para os Europeus da época da narrativa, que preferiam entregar-se a tarefas muito mais sensatas como por exemplo demandas por cidades de ouro supostamente perdidas nas selva, e fontes de eterna juventude, nunca lhes ocorrendo que se as houvesse já os índios as teriam descoberto há muito. O facto simples e evidente de haver índios idosos passou-lhes completamente ao lado. Mas enfim, para eles era uma oportunidade para brilhar e regressar às suas cortes carregados de coisas que brilhavam, a fim de serem utilizadas como moeda e como ornamento das igrejas do seu Homem-Deus que por acaso até privilegiava a pobreza. E assim iam, rio acima, crivados de flechas envenenadas, carregados com canhões e balas de canhão que os atrasavam como se lhes estivessem acorrentadas aos tornozelos, e morrendo de sede e calor sob elmos e couraças que os tornavam tartarugas de aço ; e acompanhavam-nos outros homens brancos vestidos de negro cuja tarefa era pegar em homens de pele mais escura e torna-los mais brancos através da sua Fé, que até pode mover montanhas mas que não cura cegos que não querem ver, do tipo dos que não querem colocar-se na pele do Outro e ver as coisas com os seus olhos. E muitos falhavam clamorosamente, como falham os que perseguem sonhos inatingíveis. Houve de tudo, até quem mandasse construir uma ópera no meio da selva, vê lá bem a fantasia, paga com sangue de árvores e com o suor de homens, senhores e escravos numa bizarra dialética, num estranho e trágico bailado de vaidades e vãs glórias… “Papá, falar de Homens é aborrecido, e mete-me nojo…” “Tens razão, filho. Vamos mas é esvoaçar para fora da caverna em direcção à luz, e vamos petiscar uns suculentos insectos.”

POESIA XV : EMPREGO DE SONHO

EMPREGO DE SONHO Hoje acordei por distracção. Esquecendo todos os factos, Descurando todos os pactos, Entrei no dia em colisão. Acontece-me amiúde : Olvido o que é e não é, Queimo-me na máquina do café, E perco o trem da plenitude. Passando guias de desordem A clientes que não existem, Peço aos deuses que me acordem ; E volto na hora de ponta, P´ros pesadelos que persistem Na minha casa de faz-de-conta."